Gosto muito de ovo. Ovo frito, ovo cozido, ovo escaldado, com pão torrado. Coisa boba, comecei a pensar sobre as razões por que gosto de ovo. Lembrei-me... Viajante, meu pai voltava às sextas-feiras, no trem das oito. Noite escura, nós esperando na porta; primeiro era o apito rouco, depois ele aparecia expelindo enxames de vespas vermelhas, passava debaixo da paineira, entrava na reta, e passava a quinze metros da nossa casa, o pai com a cabeça de fora do vagão, sorrindo, e todos corríamos para a estação. Ele vinha sempre alegre, com fome e sujo. Água quente não havia. Mas não tinha importância. Da leitura do Evangelho havíamos aprendido de Jesus no lava-pés que quem está com os pés limpos tem o corpo inteiro limpo. A coisa, então, era lavar os pés. E esse era o costume geral lá em Minas, lavar os pés antes de dormir. Minha mãe esquentava água no fogão de lenha, punha numa bacia e eu lavava os pés do meu pai. Depois de limpo, ele se assentava à mesa e o que tinha para comer era sempre a mesma coisa: arroz, feijão, molho de tomate e cebola, ovo frito e pão. Ele me punha assentado ao joelho e eu comia junto. Hoje, quando como pão ensopado no molho de tomate, pão lambuzado no amarelo mole do ovo, eu volto àquelas noites. Há comidas que são só comidas. Mas há comidas que são sacramentos. Estão misturadas com memórias. Fosse Jesus Cristo que estivesse escrevendo este livro, ele diria: “Nem só de ovo frito vive o homem mas das memórias que moram nele...” . Somente os poetas sabem que um ovo frito é muito mais que um ovo frito…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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