segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Desembarque pelo lado esquerdo do trem

Ele pulou da carona como um gato, apesar dos seus cento e doze quilos de puro charme. Estava atrasado para ser entrevistado para um emprego que já sabia não querer. Essas coisas que a gente faz. Sorte, pelo menos, que a entrevista era num horário besta, 11h40. Não há horário mais besta. Talvez 15h15, não sei. É uma boa briga. Enfim, horário besta em que o metrô não está tão abarrotado de gente.
Linha Azul, sentido Tucuruvi. São Judas é a terceira, geralmente tem lugar. Tinha. Sentou-se com aquele tradicional medo de a calça do terno descosturar nesses momentos escolhidos a dedo. Ele era bem bonito. Cabelo farto, já um pouco grisalho, mesmo que antes dos trinta. Nunca foi magro, sempre esbanjou quilos e charme. Costeletas, perfume bom, nunca precisou de muito mais.
Ainda se recuperava do fora que tinha levado do último namorado, que adorava seu perfume, mas andava querendo cheirar novos pescoços. Procurava não pensar muito nisso (nítido sinal de que já pensava demais). Eles tinham uma daquelas relações que pareciam não ter hora pra acabar, até que acabou de uma hora pra outra. Ia ficar tudo bem; ele sempre divou na noite paulistana.
Saúde, Praça da Árvore, Santa Cruz, Vila Mariana. Entra um cão-guia. E entra o surpreendente guiado: tão cego, tão lindo, tão gay. Nosso protagonista ficou desnorteado, era muita informação. Não se vê um cego todo dia, não se vê um gay tão evidente toda hora, e, sobretudo, não se vê homem bonito por aí. Raça ameaçada de extinção e nem por isso tutelada por alguma ONG.
Ele, que sempre foi o rei do flerte, especialmente no metrô (daqueles flertes em que os olhares continuam quando um fica no vagão e o outro na plataforma, até se perderem no vácuo), quis flertar mais do que nunca e se sentiu de mãos atadas. O que eu faço? Por onde começo? E se ele for descer no Paraíso? Ofereço ajuda? Claro que não, idiota. Brinco com o cachorro? Também não, ele tá em serviço. Pergunto se ele tem horas? Afe. Não.
Foi Ana Rosa, foi Paraíso e foi Vergueiro, e ele não desceu. Cavalera, ele está com uma camiseta da Cavalera. O protagonista vai à loucura. São Joaquim, Liberdade. Preciso paquerar esse cara antes que ele desça na Sé. Dane-se, vou lá. Colocou a mão levemente no ombro dele e disse:
Cara, você quer sentar? Acabei de vagar um lugar.
Não, não, valeu, vou descer na próxima.
(Sorte e pressa, sorte e pressa, ele pensava.)
Beleza. E… E uma cerveja um dia qualquer, você topa?
(Ele ri, surpreso.)
Pô, essa proposta é melhor do que o assento. (Riram.) Como você chama?
Davi. Prazer. E você?
Vinícius. Prazer.
E então uma voz imperativa interrompeu:
Estação Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.
Você vai descer, né? Me passa seu número antes. Deixa eu pegar o celular.
O trem parou, o cão-guia tomou a dianteira. Ele foi falando o número enquanto saía. No final, gritou:
Boa sorte no que você vai fazer agora. Não sei o que é, mas o perfume vai ajudar!
O protagonista respondeu:
Valeu! Mas acho que a coisa mais importante que eu tinha pra fazer hoje, acabei de fazer.
As portas fecharam. Ele não tirava os olhos daquela dupla na plataforma. O trem foi saindo, e para sua surpresa Vinícius foi virando o pescoço junto com o trem, como quem ainda olhava para ele dentro do vagão. Davi sentiu um frio na barriga como em nenhum outro flerte. Pelo jeito, ambos iriam viver muita coisa que, literalmente, nunca tinham visto na vida.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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