quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Torto Arado | 24

Indomável, Severo caminhou por estradas, levantou sua voz em discursos, enfrentou os novos donos e o chefe dos trabalhadores. Mudando a si em meio ao movimento que parecia crescer em nossas vidas, foi moldando Água Negra, fazendo-a se transformar num lugar diferente. Enquanto Zeca Chapéu Grande viveu, respeitou o seu desejo de não confrontar os que lhe haviam dado abrigo. Questionar o domínio das terras da fazenda seria um gesto de ingratidão. Por isso mesmo, Severo percebeu que não poderia discutir com meu pai, seu tio e sogro, seria um desrespeito por tudo o que ele significava para o nosso povo. Zeca Chapéu Grande havia mantido os moradores da fazenda unidos, foi liderança do povo por anos, e, sem permitir que se fizessem maus-tratos a nenhum trabalhador da fazenda, muitas vezes interveio, sem afrontar Sutério, para impedir injustiças maiores que as que já existiam. Graças às suas crenças, havia vigorado uma ordem própria, o que nos ajudou a atravessar o tempo até ao presente.
Sua morte deixou um vazio entre os moradores da fazenda e, por fim, a venda das terras transformou tudo de maneira repentina. As notícias que nos chegavam eram de que a fazenda havia sido vendida a um preço minguado, porque nossa presença a havia desvalorizado. O novo dono fazia uma movimentação contrária à nossa morada, talvez porque soubesse que, pelo tempo que tínhamos ali, a justiça nos reservava algum direito. Aos poucos, foi chegando, primeiro como um benfeitor, dizendo que nada iria mudar. Se mostrava solidário, levando um ou outro para a cidade em seu carro se precisava de médico, propagando aos quatro ventos como era bom com seus trabalhadores. Depois montou um barracão de mantimentos, resolveu criar porcos e quem estivesse disposto a trabalhar teria direito a salário, que as pessoas nunca receberam de fato. Os dias de trabalho eram pagos com a retirada de mercadorias e, ao sair de lá, os moradores terminavam deixando uma dívida maior do que o pagamento que tinham a receber.
Nesse campo desigual, Severo levantou sua voz contra as determinações com que não concordávamos. Virou um desafeto declarado do fazendeiro. Fez discursos sobre os direitos que tínhamos. Que nossos antepassados migraram para as terras de Água Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos negros depois da abolição. Que havíamos trabalhado para os antigos fazendeiros sem nunca termos recebido nada, sem direito a uma casa decente, que não fosse de barro, e precisasse ser refeita a cada chuva. Que se não nos uníssemos, se não levantássemos nossa voz, em breve estaríamos sem ter onde morar. A cada movimento de Severo e dos irmãos contra as exigências impostas pelo proprietário, as tiranias surgiam com mais força.
No começo, o dono quis nos dividir dizendo que aquele bando de vagabundos queria a fazenda dele, comprada com o seu trabalho. Aquele sentimento de desamparo que o povo havia sentido com a morte de meu pai foi sendo substituído pela liderança de Severo, para uns. Outros não viam com bons olhos o movimento e se opuseram abertamente a meu primo, divergindo, entrando no jogo do novo fazendeiro para fazer minar nossas forças. Guiavam seus animais na calada da noite para destruir nossas roças na vazante. Derrubavam cercas e meses de trabalho viraram pasto na boca do gado. Certo dia, fomos acordados no meio da madrugada com um incêndio em nosso galinheiro. Os ovos explodiam como bombas das festas de junho. Apagamos o fogo com as tinas de água e atirando a terra seca. Outros galinheiros também foram incendiados, o que deixou claro que era uma ação organizada do fazendeiro com alguns trabalhadores. Com receio de deixar minha mãe e minhas irmãs, fechei a casa do rio Santo Antônio de vez e voltei a morar na beira do Utinga.
Severo colheu assinatura para fundar uma associação de trabalhadores. Disse que precisávamos nos organizar ou, de contrário, acabaríamos sendo expulsos. Para muitos era impossível se imaginarem longe de Água Negra. Escutei dona Tonha, em uma conversa com minha mãe, perguntar sobre o que faria na cidade: “Vou alisar calçada? Pra viver na cidade precisa de dinheiro pra tudo. Uma cebola, dinheiro. Um tempero, dinheiro.” Bibiana esteve mais ativa ao lado do marido. Em meio à mobilização, eu ficava de bom grado com as crianças para que ela pudesse escrever, trabalhar, andar com Severo procurando ajuda na garupa da motocicleta que ele havia adquirido. Iam a sindicato, a reuniões. Voltavam, faziam mais reuniões, escondidos ora na casa de um, ora na casa de outro. Na nossa casa ocorreram muitas. Temi que minha mãe tivesse a mesma postura de nosso pai, que achasse ingratidão aquela movimentação. Mas não, ela parecia entusiasmada, desandou a contar muitas histórias, era um livro vivo. Contava as histórias dos bisavós, dos avós, da fazenda Caxangá, onde também morou, das terras do Bom Jesus, de onde veio. Intervinha ativa, ciente da importância das coisas que sabia. A essa altura, já haviam percebido que se não fizéssemos barulho para garantir nossa permanência na fazenda, não teríamos para onde ir.
Com frequência, também passou a aparecer um carro de polícia, de onde desciam para fazer perguntas, entrando nas casas, constrangendo os moradores. O medo era grande, uma casa avisava a outra quando surgiam, ou se alguém demorasse a retornar para casa ou se fosse para lugar distante. Compartilhávamos cada passo, porque entendíamos que só assim conseguiríamos nos proteger.
Bibiana e Severo se arrumaram para mais uma jornada em busca de um registro da associação de trabalhadores e pescadores de Água Negra. De posse das assinaturas, iriam ao cartório. Numa manhã nublada, de calor abafado, o céu quase branco, Salu lembrou que guardava o pedaço do bilhete que Sutério havia dado a meu pai há mais de setenta anos. Seria bom juntar uma cópia aos documentos, haviam decidido na última reunião. Era um bilhete num papel manchado que Zeca guardou junto com outros documentos, num envelope pardo, quase desfeito pelo tempo. Me lembro do dia em que Bibiana o abriu com cuidado, quando nosso pai pediu que lesse, para que todos tomássemos conhecimento sobre qual era nossa situação na fazenda. Quando Bibiana terminou de ler eu mesma fiz questão de conferir: “Esteve aqui o Sr. José Alcino pedindo uma morada eu dei a ele lá na beira do rio Utinga e disse a ele que tem que trabalhar nas roças da fazenda e pode levantar casa de barro proibido casa de tijolo.”
Bibiana já havia subido na garupa da motocicleta quando recordou do que havia esquecido. Devolveu o capacete a Severo e foi buscar o bilhete. Maria e Flora ajudavam com os pratos no quintal enquanto eu tentava acender o fogo, com a roupa molhada de suor do esforço de abanar a brasa.
Ouvi vários estampidos, como na madrugada do incêndio do galinheiro. Os ovos estouraram naquela noite, as aves ficaram esturricadas. Meu peito doía de ver os bichos da casa mortos por pura maldade. Não refizemos o galinheiro, não havia ovos para estourar e produzir aquele som que, de novo, enfraquecia meu corpo. Corri em direção ao terreiro. Eu e Bibiana chegamos à porta ao mesmo tempo.
Severo estava caído. A terra seca aos seus pés havia se tornado uma fenda aberta e nela corria um rio de sangue.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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