quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Os americanos

Mas acho que o doutor Jorge amava mais a educação que as árvores. Para haver árvores é preciso que haja o amor às árvores. Se assim não fosse, como explicar que ele tenha vendido o seu paraíso de árvores a um grupo de missionários protestantes norte-americanos, para que nele fizessem uma escola para meninos e meninas? Não vendeu por precisão. Vendeu por ideal.
Esses americanos foram para Lavras fugindo da peste, a febre amarela que assolou Campinas a partir de 1889. A morte andava solta. Quem podia fugia. A cidade ficou deserta. Aí fugiram também os missionários.
O padre, um alemão, ficou indignado ao saber da chegada dos apóstatas. Galo que canta sozinho no galinheiro se ressente quando outro galo chega e começa a cantar diferente. Tratou de insuflar os católicos para um “auto-de-fé” sem fogueira, só com pedras. Foi preciso que o capitão Evaristo o impedisse. Frustrado o “auto-de-fé”, o padre alemão pôs-se a espalhar boatos sobre os americanos protestantes. Uma empregada da dona Carlota Kemper, havendo ouvido o padre, resolveu tirar a prova. Pôs-se a observar os pés da patroa. Dona Carlota notou e ficou intrigada. “Por que a senhora olha tanto para os meus pés?”, perguntou. A empregada, meio constrangida, respondeu: “Estou vendo se o padre falou a verdade. Ele disse que os protestantes têm pés de bode...” .
Numa coisa o padre alemão estava certo: os protestantes eram gente diferente. Tolerantes, delicados, generosos e justos na sua relação com as pessoas, eram implacáveis com eles mesmos, quando o que estava em jogo era a sua relação com Deus. Com Deus não se brinca. Com Deus não havia jeito de “dar um jeito”. Deus cuidava pessoalmente dos seus negócios, não havia delegado seus poderes a ninguém, fosse igreja ou sacerdote, não precisava de santos que o ajudassem, não admitia intermediários e lobistas. Seus olhos estavam bem abertos e tinha sua contabilidade de pecados sempre em ordem. Deus, com seu olho aberto, morava no superego dos protestantes. O resultado era que a sua consciência doía muito. Todo protestante verdadeiro, dos bons, é perseguido pelo sentimento de culpa. Jamais mentiam. Deus estava vendo. Palavra de protestante valia.
Os católicos, ao contrário, não tinham superego nem consciência que lhes tirasse o sono. Viviam numa farra. Deus estava no céu, muito longe, ouvindo os coros angelicais. Quem cuidava da terra eram os santos, que compreendiam as fraquezas dos homens e eram complacentes. Não só permitiam tudo como também ajudavam, desde que seus protegidos não se esquecessem de pagar suas promessas. Pinga, malandragem, jogo, cigarro de palha, visitas às casas das putas, um tirico no barrigão de algum desafeto do partido oposto... Tudo se permitia ao fiel protegido pelo santo que ia à missa aos domingos, confessava e tomava os sacramentos.
No sertão até velório é festa”, proclamou o Riobaldo. Velório católico era festa, desculpa pra beber o morto, prova de amizade, passar a noite inteira em conversa fiada, prova de estima, comer pastéis e bolinhos que as mulheres fritavam no fogão aceso, prova de tristeza. Quem tem defunto tem de pagar a festa...
Velório protestante não era festa: nem pinga, nem conversa fiada, nem bolinhos e pastéis. Chegada a hora de dormir despachavam todo mundo de barriga vazia, fechavam a casa e deixavam o defunto sozinho na sala. Será que eles não sabiam que era perigoso deixar o defunto sozinho de noite? Pois o Diabo, vendo o morto sem vivos que o velassem, podia roubar o seu corpo e levá-lo para o inferno.
Pra resolver qualquer problema os protestantes iam à Bíblia. A Bíblia era a Palavra de Deus, inspirada de capa a capa, caminho da salvação, norma de vida. O que a Bíblia manda fazer tem de ser feito. O que a Bíblia manda não fazer não pode ser feito. Os católicos achavam que Bíblia era coisa do Diabo. Era mais seguro acreditar no padre.
O doutor Gammon, homem bonito que provocava suspiros, era o reitor da escola. Aos domingos ia a Ribeirão Vermelho, uma cidadezinha às margens do rio Grande distante oito quilômetros de Lavras. Ia lá para pregar a Palavra de Deus. Fazia a pequena viagem num tílburi. Domingo, de manhã bem cedo, um empregado ia ao pasto, pegava o cavalo e o atrelava ao tílburi e lá ia o doutor Gammon pela estradinha de terra. Dona Carlota era rigorosa observadora do domingo. O seu zelo era tal que se alguém lhe entregasse uma carta no dia de domingo ela a abriria só na segunda-feira. Percebeu que o doutor Gammon estava incorrendo em grave pecado. Chamou-o e repreendeu-o. Ele estava transgredindo o quarto mandamento, que manda santificar o sétimo dia: “Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro” (Êxodo 20.10). Não sei se por temor à lei de Deus ou temor à dona Carlota, o fato é que daquele dia em diante, aos domingos, o empregado descansava, o cavalo descansava e o doutor Gammon se cansava. Ia a pé para Ribeirão Vermelho…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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