quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Da cosmovisão miranha

Para Theo, que nomeou esta história, e para Nina, que traz no rosto a nossa herança. Meus iauaretês.
Para Raoni, a Onça.

Quando Niimúe criou o mundo, o fez a partir de seu próprio corpo. O mundo é esse ser gigante que mal distinguimos se estamos distraídos, mas que se apurarmos a vista encontraremos em seus detalhes. Há uma elegância no mundo por vezes despercebida na pressa com que as pessoas vão se acostumando a viver. Em seus cabelos se emaranham de igual modo os fios de fogo, de água, de vento e de ar. Em seu rosto se incrustam jaguares e macacos, ratos e antílopes, formigas e quatis, beija-flores e serpentes, todo sortimento de animais que conhecemos, além daqueles que desconhecemos, os animais sem nome, ainda não descobertos, não catalogados, sem taxonomia, os animais desaparecidos.
Uma gigantesca jiboia circunda a cintura do mundo e se fecha, engolindo a si própria. Inhames, batatas e macaxeiras calçam seus pés, trepadeiras, troncos, cipós, orquídeas e flores de diversas cores e formatos conformam-se em peitoral, braços, pernas, sexo. Em suas unhas escarpadas de rochas e cristais irrompem folhagens ora miúdas, ora de formidável tamanho, abrindo fendas em seus corações minerais. O sexo do mundo é instável, ora macho, ora fêmea, ora macho e fêmea, ora algo que não podemos definir com palavras, esse meio insustentável para a mensagem. A aparência do mundo é também instável. Muitas vezes seu rosto se afigura como que feito de legumes e frutas, árvores milenares irrompem de protuberâncias na testa, como chifres. Muitas vezes assume o aspecto de uma grande e dessemelhante ave. Seus olhos, no entanto, são sempre faíscas multicoloridas.
Niimúe ofereceu sua criação aos primeiros donos, os animais primordiais. É com eles que as pessoas precisam negociar para comer, para beber, para construir casas, edifícios, iglus, taperas, malocas, favelas. É a eles que se deve prestar contas do minério extraído até que a terra vire ferida em crosta, das caldeiras explodidas, dos carburadores entupidos, dos rios envenenados e das minúsculas partículas de plástico que incham no ventre dos oceanos. É a eles que deveremos prestar contas. E eles cobrarão.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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