domingo, 26 de setembro de 2021

A viagem a Lavras

Na estação da Rede Mineira Viação estávamos eu e minha mãe esperando o trem que nos levaria a Lavras. Batia o sino da estação. Parecia sino de igreja. Estação é igreja? Pode ser. Pode ser céu para quem volta, pode ser céu para quem vai.
O sino batera porque o telégrafo, com seus bipes em Morse, informara o chefe da estação que o trem acabara de partir da estação mais próxima. Dentro de uns vinte minutos estaria chegando. Aí os olhos de todos se voltavam para a esquerda. O trem viria da esquerda. Antes de aparecer, seria o apito rouco da maria-fumaça resfolegando nas curvas, “vim-da-barra-tô-cansada, vim-da-barra-tô-cansada, vim-da-barra-tô-cansada”, gritando às pessoas e bichos que fugissem dos trilhos. As marias-fumaça falam sempre, cada uma na sua língua. Kurosawa disse que no Japão as marias-fumaça diziam: dodêskaden, dodêskaden, dodêskaden. Finalmente ela aparecia ao longe, negra, bufando fumaça pela chaminé. Aproximando-se da plataforma era o barulho dos ferros, o guincho das rodas escorregando sobre os trilhos por causa da freada, aço contra aço, o chiado dos vapores que saíam assobiando da caldeira que os fogos da fornalha faziam ferver. Desciam os que chegavam. Embarcavam os que partiam. Púnhamos as malas no bagageiro suspenso do vagão de primeira classe, tomávamos o nosso lugar, o chefe da estação tocava um apito e gesticulava, dizendo ao maquinista que podia partir. A máquina apitava, esforçava-se aos sacolejões para vencer a inércia e partia. Depois eram as paradas nas estações intermediárias, dava tempo de descer e comer pastel ou empadinha com café ralo melado. O trem parava para a máquina beber água, a noite descendo triste, agora era a luz do holofote iluminando para a frente e os milhões de fagulhas espalhando galáxias efêmeras pelo céu...
Da porta da estação, Lavras aparecia como uma cidade encantada, adormecida, ninguém na rua — as poucas pessoas que apareciam eram sombras indefinidas, vultos que se moviam no escuro. O casario mal se via, as sombras das casas aparecendo borradas à luz mortiça das lâmpadas que se esforçavam por iluminar com o seu brilho de velas que ameaçavam se apagar.
Procurávamos um carro de aluguel. Minha mãe simplesmente dizia ao chauffeur: “Para o sobrado...” . Nenhum deles jamais perguntou: “Que sobrado? Qual é o endereço?”. Todo mundo sabia o que era o sobrado. Havia outros. Mas apenas aquele era “o sobrado”. Minha mãe estava feliz. Estava retornando ao ninho, à casa da sua meninice e juventude, a “sua” casa…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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