sexta-feira, 30 de julho de 2021

Inventar meu porto

Dobrei — entre contentamento e tristeza — as poucas e mudas roupas. Nunca soube por que as lágrimas se negam a serem doces quando convocadas pela alegria. Sempre chorei salgado, talvez pelo peso da carne morta. Meu desterro, decretado pela voz do pai — naquela manhã seca e fria —, me fez inventar meu porto, mesmo sem escolher a margem do rio. Do abandono construí meu cais sempre do outro lado. Em barco sem âncora e bússola, carrego, agarrado ao meu casco, caramujos suportando sobre si o próprio abrigo, solitariamente.
Não disse adeus. O amor peregrinou em meu corpo vida adentro. Se tudo era nada, a lembrança acordava mais. O amor se fez sempre o rosto do meu depois. A saudade, ao me afrontar, mais eu desfazia dos amanhãs. E, se a carne reclamava, eu salgava sua dor com os sonhos da memória. Sua ausência ocupou os labirintos por onde eu me procurava e me perdia em meus próprios traços. Mesmo em vão, jamais interditei os prenúncios do meu amor.
Dois. Desconheço o depois de minha despedida. Não se caminha sobre a sombra ao entardecer. Ignoro se o remorso nos preservava em suas memórias, ou se a paixão lhes presenteou com o esquecimento. A culpa é relativa ao tamanho da memória. Esquecer é desexistir, é não ter havido. Ao me interrogar se tomate ainda há, não me fecho em silêncio. Confirmo que minha primeira leitura se deu a partir de um recado rabiscado pela faca no ar cortando em fatias o vermelho.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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