domingo, 27 de junho de 2021

O poder da poesia

Tem sido privilégio de nossa época – entre guerras, revoluções e grandes movimentos sociais – desenvolver a fecundidade da poesia até limites insuspeitados. O homem comum tem podido confrontá-la de maneira que fere ou é ferida, seguramente na solidão, seguramente na massa montanhosa das reuniões públicas.
Nunca pensei, quando escrevi meus primeiros livros solitários, que com o passar dos anos me encontraria em praças, ruas, fábricas, salas de aula, teatros e jardins, dizendo meus versos. Percorri praticamente todos os rincões do Chile, derramando minha poesia entre a gente de meu povo.
Contarei o que me aconteceu na Vega Central, o mercado maior e mais popular de Santiago do Chile. Chegam ali ao amanhecer os infinitos carros, carretas, carroças e caminhões que trazem os legumes, as frutas, os comestíveis, de todas as chácaras que rodeiam a capital devoradora. Os carregadores – uma comunidade numerosa, mal paga e em geral descalça – pululam pelos cafés, albergues noturnos e tascas dos bairros próximos à Vega.
Alguém veio me buscar um dia em um automóvel e entrei nele sem saber exatamente aonde nem para o que ia. Levava no bolso um exemplar de meu livro España en el corazón. Dentro do carro me explicaram que estava convidado para dar uma conferência no sindicato de carregadores da Vega.
Quando entrei na sala desarrumada senti o frio do Nocturno de José Asunción Silva, não só pelo avançado do inverno como também pelo ambiente que me deixava atônito. Sentados em caixotes ou em improvisados bancos de madeira, uns cinquenta homens me esperavam. Alguns levavam à cintura um saco amarrado à maneira de avental, outros se cobriam com velhas camisetas remendadas e outros desafiavam o frio mês de julho chileno com o torso nu. Sentei-me detrás de uma mesinha que me separava daquele estranho público. Todos me olhavam com os olhos negros e estáticos do povo de meu país.
Lembrei-me do velho Lafferte. A esses espectadores imperturbáveis que não movem um músculo da cara e olham de forma constante, Lafferte designava com um nome que me fazia rir. Certa vez no pampa salitreiro me disse:
Olha lá no fundo da sala, apoiados na coluna, os muçulmanos estão nos olhando. Só lhes falta o albornoz para serem iguais aos impávidos crentes do deserto.
Que fazer com este público? De que podia lhes falar? Que coisa de minha vida poderiam lhes interessar? Sem conseguir decidir nada e escondendo a vontade de sair correndo, tomei o livro que levava comigo e disse:
Há pouco tempo estive na Espanha. Havia ali muita luta e muitos tiros. Ouçam o que escrevi sobre aquilo.
Devo explicar que meu livro España en el corazón nunca me pareceu um livro de compreensão fácil. Tem uma aspiração à claridade mas está empapado pelo torvelinho daquele grande e múltiplo sofrimento.
O certo é que pensei ler umas poucas estrofes, acrescentar umas poucas palavras e me despedir. Mas as coisas não aconteceram assim. Ao ler um poema atrás do outro, ao sentir o silêncio como de água profunda em que caíam minhas palavras, ao ver como aqueles olhos e sobrancelhas escuras seguiam intensamente minha poesia, compreendi que meu livro estava chegando a seu destino. Continuei lendo mais e mais, comovido eu mesmo pelo som de minha poesia, sacudido pela magnética relação entre meus versos e aquelas almas abandonadas.
A leitura durou mais de uma hora. Quando estava para me retirar, um dos homens se levantou. Era dos que levavam o saco amarrado ao redor da cintura.
Quero lhe agradecer em nome de todos – disse em voz alta. – Quero lhe dizer, além disso, que nunca nada nos impressionou tanto.
Ao terminar estas palavras explodiu num soluço. Outros vários também choravam. Saí à rua entre olhares úmidos e apertos de mãos rudes.
Pode um poeta ser o mesmo depois de ter passado por estas provas de frio e fogo?

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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