domingo, 28 de março de 2021

Dante, o “companheiro de viagens”

Era domingo, e os trabalhadores deviam vir no dia seguinte, das aldeias próximas, para começar o trabalho da mina. Tinha, portanto, tempo para dar uma volta e ver sobre que praias me havia jogado a sorte. A madrugada acabava de raiar quando saí. Passei os jardins, e acompanhei a praia; travei apressadamente relações com a água, a terra e o ar das redondezas; colhi plantas selvagens e minhas mãos ganharam logo o cheiro da salsa, da erva-doce, da hortelã.
Subi a uma elevação e olhei à volta. Uma paisagem austera, de granito e pedra dura. Árvores sombrias, oliveiras prateadas, figueiras e vinhedos. Em partes mais defendidas, pomares com laranjeiras, limoeiros e nespereiras; perto do mar, as hortas. Ao sul, o mar ainda irritado, imenso, vindo das costas africanas, barulhento, lançava-se rosnando de encontro a Creta. Pertinho uma ilhota baixa, arenosa, pintada de um tom rosa, virginal sob os primeiros raios.
Essa paisagem cretense parecia assemelhar-se à boa prosa: bem trabalhada, sóbria, sem riquezas supérfluas, possante e contida.
Expressava o essencial com os meios mais simples. Não brincava, e recusava-se a utilizar qualquer artifício. Dizia o que tinha a dizer com uma austeridade viril. Mas, entre as linhas severas, distinguia-se uma sensibilidade e ternura inesperadas; nas partes mais defendidas os limoeiros e laranjeiras recendiam, e mais longe, do mar infinito, emanava uma inesgotável poesia.
Creta — murmurei, — Creta... — e meu coração batia.
Desci da pequena colina e retomei a praia. Meninas alegres apareceram, mantilhas brancas como a neve, altas botas amarelas, saias enfunadas; iam à missa no monastério que se via ao longe, estonteante de brancura, à beira-mar.
Parei. Desde que me viram, seus risos se apagaram. Seus rostos, ao ver um homem estranho, se fecharam. Da cabeça aos pés seus corpos se puseram na defensiva, e seus dedos se cruzavam sobre os corpetes estreitamente abotoados. Seus corações se apressaram. Sobre todas as costas cretenses voltadas para a África os corsários fizeram durante séculos incursões repentinas, destruindo rebanhos, mulheres, crianças. Eles se amarravam com seus cinturões vermelhos, jogavam-nas aos porões e levantavam-nas para vender na Argélia, em Alexandria ou Beirute. Durante séculos, nesse litoral cheio de tranças negras, o mar fez ecoar os prantos. Vi aproximaram-se as meninas ariscas, coladas umas às outras como para formar uma barreira intransponível. Movimentos seguros, indispensáveis nos séculos passados, e que voltavam hoje sem razão, seguindo o ritmo de uma necessidade já desaparecida.
Quando cruzamos, afastei-me tranquilamente e sorri.
Imediatamente, como se percebessem de repente que o perigo passara há séculos — acordando subitamente na nossa época de segurança — seus rostos se iluminaram, a frente de combate em fileira cerrada espaçou-se, e todas elas a um só tempo me disseram bom dia com vozes alegres e límpidas. Nesse minuto, os sinos do monastério, felizes e brincalhões, encheram o ar com sua alegria.
O sol já ia alto, o céu estava limpo. Acomodei-me entre os rochedos, aninhado como uma gaivota em seu buraco, e contemplei o mar. Sentia meu corpo cheio de forças, fresco e dócil. E meu espírito, acompanhando o movimento das ondas, tornou-se ele mesmo uma onda e submeteu-se ao ritmo do mar.
Pouco a pouco meu coração enchia-se. Vozes obscuras subiam dentro de mim, imperiosas e suplicantes. Sabia quem chamava.
Bastava que eu ficasse a sós um instante para que ele gritasse em mim, angustiado por pressentimentos horríveis, de pavores loucos, de exaltações, e esperava de mim o parto.
Abri rapidamente o Dante, o “companheiro de viagens”, para não ouvir e calar o terrível demônio. Folheava, lia um verso aqui, outro lá, vinha-me à cabeça o canto inteiro e, dessas páginas ardentes, saíam uivando os condados. Mais alto, almas feridas esforçavam-se em escalar uma alta e escarpada montanha. Mais alto ainda, vagavam em planícies de esmeraldas as almas dos bem-aventurados, como brilhantes vaga-lumes. Ia e vinha de alto a baixo no terrível edifício do destino, circulava à vontade no Inferno, no Purgatório e no Paraíso como em minha própria casa. Sofria, aguardava ou desfrutava da beatitude, deixando-me levar pelos versos maravilhosos.
De repente fechei o Dante e olhei ao largo. Uma gaivota, deitada sobre uma onda, subia e descia com ela, saboreando feliz a grande volúpia do abandono. Um jovem bronzeado surgiu à beira da água, descalço e cantando cantigas de amor. Talvez compreendesse ele o sofrimento que expressavam, pois sua voz começava a enrouquecer como a de um jovem galo.
Durante anos, séculos, os versos de Dante eram cantados assim na terra do poeta. E como as canções de amor preparam os rapazes e moças para amar, os ardentes versos florentinos preparavam os efebos italianos para a luta pela libertação. Todos, de geração em geração, comungavam com a alma do poeta, fazendo de sua escravatura a liberdade.
Ouvi um riso atrás de mim. Despenquei-me de uma vez só dos píncaros dantescos, voltei-me e vi Zorba em pé, rindo com todo o rosto.
Que modos são esses, patrão? — gritou ele — há horas estou a sua procura, mas de onde desencravá-lo?
E, como me visse silencioso, imóvel:
Já passa de meio-dia — gritou ele, — a galinha está no ponto; se continua no fogo vai se desmanchar toda, pobrezinha! Está me ouvindo?
Ouvi, mas não tenho fome.
Não tem fome, essa é boa! — Zorba disse, batendo com ruído nas coxas. — você não comeu nada desde manhã. É preciso cuidar também do corpo, tenha pena dele! Dê-lhe de comer, patrão, dê-lhe de comer; é o nosso burrico, você sabe. Se você não o alimenta, um belo dia ele irá largá-lo no meio da estrada.
Há anos eu desprezava as alegrias da carne, e, se fosse possível, teria comido escondido, como se fosse uma ação feia. Mas, para que Zorba não se pusesse a resmungar:
Está bem — disse, — já vou.
Fomos em direção da aldeia. As horas sobre o rochedo haviam passado como horas de amor, rápidas como o relâmpago. Sentia ainda sobre mim o sopro inspirado do florentino.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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