terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Torto Arado / 6

          Demorou algumas semanas até que Crispina, em parte, se pacificasse. Antes disso foi preciso conviver com seus gritos e gemidos, dia e noite. De dia, já era de certa forma esperado. À noite, nos arrepiávamos e acordávamos aturdidos. Via meu pai Zeca levantar de seu quarto e seguir acompanhado de minha mãe para onde estava a interna. Escutávamos tudo de onde estávamos, minúsculo cômodo onde nós, irmãos, dormíamos amontoados, mas quando as palavras chegavam até mim eram apenas sussurros que mal conseguia distinguir. Minha mãe passava com o candeeiro aceso no quarto para bem-fadar nosso sono. Essa rotina se repetiu por semanas.
Quando retornei certa manhã, depois de aguar as plantas do quintal – e Crispina já reagia bem às rezas e poções de raízes que meu pai administrava –, ouvi as duas irmãs conversando baixo, a princípio, mas depois se tornou um crescente exaltar de vozes vindas do quarto onde estavam. Tinham acabado de voltar de um passeio pelo terreiro da casa, consentido pelo curador. Não pude escutar tudo, mas suas sentenças passaram o resto do dia martelando em minha cabeça: “Não foi verdade”, “Foi, sim”, “Você adoeceu, Crispina”, “Não estou doida, Crispiniana”, “Não diga uma tolice dessas na frente de nosso pai”, “Que você estava no mato com ele”, “Isidoro nem estava por lá essa hora”, “Isidoro fez promessa de morar comigo”, “Fez promessa não, senhora. Você que está inventando coisa”, “Fala isso porque é você que quer ele e estava lá no mato”, “Maluca, por isso está aqui”.
Escutei tudo suavizando minha respiração, atenta ao que diziam, na mesma medida que estava alerta à presença de minha mãe, que poderia chegar a qualquer momento e me surpreender escutando a conversa. Sabia bem que repreensão teria se fosse apanhada ouvindo duas pessoas mais velhas. Foi quando Crispina gritou para que a irmã saísse dali, que a deixasse em paz, e das brechas da cortina que separava os cômodos, vi seus olhos ficarem vermelhos feito dois torrões de brasa. Ela começou a salivar de tal forma que se formou um muco leitoso no canto da boca. Eram gritos misturados ao choro alto. O caos se instaurou naquele instante, as duas choravam até que, depois de certo ponto, rolavam pelo chão retirando seus lenços e se agarrando aos cabelos.
Eu estava surpresa, mas Belonísia se aproximou de mim rindo da cena. Minha mãe, que lavava utensílios com a água que eu havia pegado no rio mais cedo, deixou as panelas no jirau e correu para o quarto. “Mas o que é isso?”, disse avançando para tentar separar as duas, “Anda, vocês duas” – olhou para mim e Belonísia – “me ajudem aqui”. Seguramos Crispiniana pelos braços. Ela tinha os olhos lacrimosos e o cabelo em pé de tantos puxões que havia levado; minha mãe segurou os dois braços de Crispina, a perturbada, com os olhos vítreos e a boca repetindo as acusações que havia lançado à irmã. Minha mãe ameaçou chamar compadre Saturnino para levar as duas dali, “e aí não tem remédio, acaba o tratamento e não vou querer você de volta, Crispina”. Nos braços de minha mãe mesmo, Crispina, agitada, chorou repousando a cabeça nos seus seios. Salustiana Nicolau ordenou que Crispiniana saísse com nós duas e que as deixássemos a sós por um tempo.
Crispiniana ajeitou a roupa rasgada em seu corpo e foi para o quintal. Chorou em silêncio e, quando seus olhos ficaram cansados de verter lágrimas, pegou os utensílios que minha mãe lavava para terminar o trabalho. Eu e Belonísia continuamos na sala, fingindo brincar em silêncio para escutar o que Crispina dizia. Crispina repetiu o que havia dito, que encontrou seu noivo deitado com a irmã na roça dele. Que foi tomada de um sentimento de amargor que nunca havia experimentado. Que já não atinava mais coisa com coisa e foi tomada de uma coisa ruim que a perturbou por completo. Só veio recobrar a consciência quando já estava instalada em nossa casa, há semanas, e aos poucos foi recordando os dias que antecederam seu desaparecimento.
O resto da história nós sabíamos de escutar compadre Saturnino contar no dia em que chegaram à casa, e mais as prosas das vizinhas, compadres e comadres que repetiam a novidade nos caminhos que cortavam a fazenda. Depois de sumir sem deixar vestígios, pai, noivo e irmãos procuraram Crispina por roças, na mata que cercava o rio Santo Antônio, pelos pântanos e brejos dos marimbus, sem êxito. O pai, atormentado com aquele inesperado desaparecimento, chegou à cidade caminhando e procurou por ajuda da polícia. A cada dia chegava uma notícia nova, de que Crispina estava indo para um povoado nas cercanias da fazenda, ou que alguém a havia visto subindo num ônibus em direção à capital, ou que ouviram urros de uma mulher louca durante a madrugada, como se fosse um bicho. Ou ainda, que tinham visto alguém tirando frutas do quintal, que compadre Domingos havia atirado numa pessoa pensando que era uma raposa, e quando Saturnino chegou tonto na casa do compadre, teve a história desmentida.
Oito dias depois, Crispina foi encontrada por um coveiro deitada entre os túmulos no cemitério da cidade, incapaz de responder sobre quem era, muito menos onde vivia e o que estava fazendo ali. Surgiu poucos dias depois do feriado de finados, deitada em meio a flores murchas que já haviam perdido a frescura, mas ainda guardavam o perfume das coisas que mirram e diminuem em sua própria finitude. Angélicas, crisântemos, lírios deixados pelas famílias mais abastadas, e flores artificiais, de arame e papel crepom desbotado pelo tempo, pelas famílias desprovidas. Estava mais magra, abandonada ao próprio esquecimento, suja da terra que revolviam para sepultar os mortos, da longa caminhada, com os pés e mãos feridos, com um odor forte de suor e urina. Compadre Saturnino foi ao encontro da filha, submisso ao destino, aceitando o imprevisto. Não contou com a boa vontade de Sutério para buscá-la com o Ford Rural. O gerente havia alegado trabalhos para não fazer o transporte no carro do patrão. Daí que veio a ideia de laçá-la como se laçam os animais na lida do campo ou os perturbados conduzidos aos curadores de jarê. E caminhando por muitas horas chegaram aos domínios de Zeca Chapéu Grande, para que pudesse curá-la do infortúnio da loucura que havia se abatido sobre seu juízo.
De loucura meu pai entendia, assim diziam, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida. Os curadores serviam para restituir a saúde do corpo e do espírito dos doentes, era o que sabíamos desde o nascimento. O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. Diziam que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar noutro, deixando a terra para entrar no rio. Gente que perseguia a fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se frustrava depois de tempos de trabalhos fatigantes, quebrando rochas, lavrando cascalhos, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma ínfima o seu horizonte. Quantos do que encontravam a pedra estavam libertos do delírio? Quantos tinham que proteger seu bambúrrio da cobiça alheia, passando dias sem dormir, com os diamantes debaixo do corpo, sem se banhar nas águas dos rios, atentos a qualquer gesto de trapaça que poderia vir de onde menos se esperava?
Crispina tentou de todo jeito fazer com que minha mãe mandasse a irmã de volta para casa, que a deixasse ali sozinha. Minha mãe, de forma assertiva, disse que o passado ficaria para trás, que elas eram irmãs e naqueles dias que se encontrava recolhida em nossa casa Crispiniana tinha zelado por ela como se fosse uma mãe. “Onde já se viu irmãs da mesma barriga viverem a vida como se fossem inimigas?”, perguntou. Disse que nunca em sua vida tinha visto algo assim, e que aquilo deveria trazer má sorte para a vida das duas. As gêmeas voltaram a se falar e conviver como antes no resto da temporada em nossa casa. Não brigaram mais, porém tampouco “se uniram como os dedos da mão”, diria minha mãe certo dia para meu pai.
Crispina recobrou a saúde, o viço da pele, as forças de jovem lavradora, como grande parte das mulheres que residiam na fazenda. Havia brilho em seus olhos e se tornou novamente um espelho da irmã, Crispiniana. Logo seria hora de regressarem para as margens do Santo Antônio. Agora, mais que antes, laços concretos nos uniam: a mão de meu pai estava repousada, enquanto vivesse, em sua cabeça. Repousada nas cabeças dos membros de sua família. Zeca Chapéu Grande não era apenas um compadre. Era pai espiritual de toda a gente de Água Negra. Quando deixou nossa casa, ela voltou, contra a vontade do pai, a se encontrar com Isidoro. Pegaram seus pertences e foram morar juntos numa casa de barro que levantaram na parte destinada à morada dos trabalhadores. Da porta da casa do pai, Crispiniana mirava a vida da irmã com sua grande paixão. Não acreditávamos que a história das irmãs fosse terminar daquela forma.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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