domingo, 17 de janeiro de 2021

O ausente

O primo Mauro
voltou da guerra.
Abraçou-nos
longamente, um por um.

Era uma chegada,
mas ele se despedia.

Às boas-vindas, retorquiu:
Deixei de ser gente,
como posso ter casa?

Toda a noite,
escutei o seu pranto.

Nas outras noites,
o mesmo choro se desenrolou.

Minha mãe, vaticinou:
só um ausente
pode ser assim plangente.

Sei dessa ausência, disse ela.

Toda a mãe,
em cada filho,
dá à luz a eternidade.

Internaram Mauro.

Doía-lhe a Vida
como certeira bala,
doía-lhe a noite
como corpo deixado na trincheira.

Urgia desarmar-lhe os mortos,
deitá-lo num sono muito branco
até que, por fim,
entre trevas ele a si regressasse.

Mas a morte,
e tanta morte houve,
não fora apenas em falso: fora falsa.

Afinal,
só mata quem já está morto.

A guerra fora-se,
ajoelharam-se os exércitos.

Mas por mais que a farda despisse,
por muito que a arma depusesse:
o primo Mauro
nunca mais deixava de ser soldado.

Dentro do guerreiro
vivia, eterna, a guerra.

O inferno,
mesmo o mais pequeno,
é, sempre, para sempre.

Hoje,
envergando uniforme,
me despeço dos meus.

Abraço-os, um por um.

E prometo voltar.

Mia Couto

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