quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Finitude

         Existem muitas histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verdadeiras. Seus métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva como “freudiano barbaridade”. E parece que dão certo, pois sua clientela aumenta. Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.
Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o analista de Bagé faz é lhe dar um joelhaço. Em paciente homem, claro, pois em mulher, segundo ele, “só se bate pra descarrega energia”. Depois do joelhaço o paciente é levado, dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.
Te abanca, índio velho, que tá incluído no preço.
Ai – diz o paciente.
Toma um mate?
Nã-não...  geme o paciente.
Respira fundo, tchê. Enche o bucho que passa.
O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:
Agora, qual é o causo?
É depressão, doutor.
O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
Tô te ouvindo – diz.
É uma coisa existencial, entende?
Continua, no más.
Começo a pensar, assim, na fìnitude humana em contraste com o infinito cósmico...
Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente á condição humana. E isso me angustia.
Pois vamos dar um jeito nisso agorita – diz o analista de Bagé, com uma baforada.
O senhor vai curar a minha angústia?
Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.
Mudar o mundo?
Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.
Mas... Isso é impossível!
Ainda bem que tu reconhece, animal!
Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice e da gorda.
Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta…
Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
Me alimento.
Tem casa com galpão?
Bem... Apartamento.
Não é veado?
Não.
Tá com os carnê em dia?
Estou.
Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.
O Freud não me diria isso.
O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
Não. - Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.
Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta:
É pior que joelhaço?

Luís Fernando Veríssimo, in Histórias do Analista de Bagé

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