quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Xisus Cristo

           Alguma vez você já se perguntou qual é a palavra proferida com mais frequência por pessoas prestes a morrer de morte violenta? O MIT realizou um amplo estudo da questão entre comunidades heterogêneas na América do Norte e descobriu que a palavra não é outra senão “porra”. 8% das pessoas prestes a morrer dizem “que porra”, 6% dizem apenas “porra”, e há ainda outros 2,8% que dizem “porra, cara”, embora no caso destes, é claro, “cara” seja a última palavra, mesmo que o “porra” a ofusque irrefutavelmente. E o que diz Jeremy Kleinman um minuto antes de passar dessa pra melhor? Ele diz: “Sem queijo.” Jeremy diz isto porque está justamente fazendo um pedido em uma lanchonete de cheeseburger chamada Xisus Cristo. Eles não têm hambúrgueres simples no menu, então Jeremy, que é cuidadoso quanto ao kashrut , pede um cheeseburger sem queijo. A gerente de turno não cria caso. Muitos clientes já pediram o mesmo no passado, tantos que ela sentiu a necessidade de comunicar o fato, em uma série de e-mails detalhados, ao diretor-geral da rede Xisus Cristo, cujo escritório fica em Atlanta. Ela sugeriu que ele adicionasse um hambúrguer simples ao menu. “Muitas pessoas me pedem isto, mas, no momento, são obrigadas a pedir um cheeseburger sem queijo. Esta é uma possibilidade com pretensão de ser inteligente, mas um pouco embaraçosa. É constrangedora também para mim, e, se me permitem, para toda a rede. Faz-me sentir como uma tecnocrata, e os clientes pensam que a organização é inflexível, que eles precisam enganar a fim de obter o que querem.” O diretor-geral nunca respondeu a seus e-mails, e, para ela, este fato era ainda mais constrangedor e humilhante do que todas aquelas vezes em que os clientes pediam cheeseburgers sem queijo. Quando uma funcionária dedicada confronta seu empregador com um problema, especialmente um problema relacionado ao local de trabalho, o mínimo que ele pode fazer é reconhecer sua existência. O diretor-geral poderia ter-lhe escrito que o assunto estava sendo estudado, ou que apreciava a pergunta dela, mas que lamentavelmente não poderia alterar o cardápio, ou ainda um milhão de respostas vãs deste tipo. Mas ele, não. Não escreveu nada. E isto fez com que ela se sentisse invisível. Exatamente como naquela noite em New Haven, quando o namorado Nick começou a dar em cima da garçonete enquanto ela própria estava sentada com ele no bar. Ela chorou e Nick nem sequer entendeu por quê. E na mesma noite ela arrumou suas coisas e foi embora. Amigos comuns ligaram para ela algumas semanas depois e contaram que Nick tinha se suicidado. Não a culparam abertamente pelo acontecido, mas havia algo no modo como lhe contaram, algo repreendedor, embora ela não soubesse dizer o quê. Em todo caso, como o diretor-geral não lhe respondeu, ela considerou pedir demissão. Mas esta história com Nick a impediu de agir assim, e não porque pensasse que o diretor-geral da Xisus Cristo se suicidaria ao ouvir que uma gerente de turno em alguma filial fedorenta do interior se demitiu porque ele não lhe respondera. A verdade, porém, é que o diretor-geral se mataria se tivesse ouvido que ela se demitira por causa dele. A verdade é que se o diretor-geral tivesse ouvido que, devido ao fenômeno da caça ilegal na África, o leão branco se tornara animal extinto, ele se suicidaria. Ele teria se suicidado mesmo depois de ouvir algo mais trivial como, por exemplo, que iria chover no dia seguinte. O diretor-geral da rede de lanchonetes Xisus Cristo sofria de grave depressão clínica. Seus colegas de trabalho sabiam disso, mas tinham o cuidado de não espalhar este fato doloroso, principalmente porque respeitavam sua vida privada, e também porque isto poderia ter derrubado instantaneamente os preços das ações. Afinal, o que é que a Bolsa nos vende a não ser a esperança infundada de um futuro promissor? E um diretor-geral que sofre de depressão clínica não é exatamente o embaixador ideal para esse tipo de mensagem. O diretor-geral da Xisus Cristo, que entendia totalmente a problemática pessoal e pública do seu estado emocional, tentou obter ajuda com medicação. O tratamento não ajudou em nada. As pílulas lhe foram prescritas por um médico iraquiano exilado, que havia recebido o estatuto de refugiado nos Estados Unidos depois que sua família foi acidentalmente destruída por um F-16 tentando assassinar os filhos de Saddam Hussein. Sua esposa, pai e dois filhos pequenos foram mortos, e só a filha mais velha, Suha, sobreviveu. Em entrevista à CNN, o médico disse que, apesar de sua tragédia pessoal, não estava zangado com o povo americano. Mas a verdade é que ele estava. Estava mais que zangado, estava fervendo de raiva do povo americano. Mas sabia que, se quisesse o green card, devia mentir a respeito. Quando mentiu, pensou em seus familiares mortos e na filha viva. Acreditava que uma educação americana seria boa para ela. Estava errado. Sua filha ficou grávida aos quinze anos de um garoto branco – um lixo gordo que estava um ano à frente dela na escola e que se recusou a reconhecer o bebê. Devido a complicações na gravidez, o bebê nasceu com deficiência mental. Nos Estados Unidos, assim como na maioria dos outros lugares do mundo, quando alguém é mãe solteira aos quinze anos de idade, de uma criança deficiente, para todos os efeitos o seu destino está selado. Certamente há algum filme ruim que afirma que não é bem assim, que a pessoa ainda pode encontrar o amor e ter uma carreira e quem sabe mais o quê. Mas isto é apenas no cinema. Na vida real, no momento em que lhe disseram que seu filho era deficiente mental, foi como se uma placa de neon com a legenda game over estivesse piscando no ar acima de sua cabeça. Talvez se seu pai tivesse dito a verdade na CNN e eles não tivessem ido para os Estados Unidos, seu destino pudesse ter sido diferente. E se Nick não tivesse começado a dar em cima daquela loira oxigenada no bar, sua situação com a gerente da filial teria sido muito melhor. E se o diretor-geral da rede Xisus Cristo tivesse recebido um tratamento médico correto, sua situação teria sido simplesmente ótima. E se aquele louco na lanchonete de cheeseburger não tivesse esfaqueado Jeremy Kleinman, Jeremy Kleinman estaria vivo, o que, na opinião da maioria das pessoas, é muito melhor do que o estado morto em que ele agora se encontra. A morte dele não foi imediata. Ele engasgou, tentou dizer alguma coisa, mas a gerente da filial, que segurava sua mão, disse-lhe que não falasse, para preservar as suas forças. Ele não falou, tentou preservar as suas forças. Tentou, mas não conseguiu. Há uma teoria, acho que também fora do MIT, sobre o efeito borboleta: uma borboleta agita suas asas em uma praia no Brasil, e, como resultado, um tornado ocorre no outro lado do mundo. O tornado aparece no exemplo original. Eles poderiam ter pensado em um exemplo diferente, em que o bater de asas de borboleta traz chuvas abençoadas, mas os cientistas que desenvolveram a teoria escolheram um tornado, e não porque fossem como o diretor-geral da Xisus Cristo, clinicamente deprimidos. É porque cientistas que se especializam em probabilidades sabem que a chance de que algo prejudicial ocorra é mil vezes maior do que a chance de acontecer algo benéfico. “Segure a minha mão”, é o que Jeremy Kleinman queria dizer para a responsável de turno enquanto a vida vazava dele como de uma caixinha furada de leite achocolatado, “segure e não largue, aconteça o que acontecer.” Mas ele não disse isso porque ela lhe pediu que não falasse. Ele não disse porque não havia necessidade, e ela segurou a sua mão suada até que ele morreu. Na verdade, por muito tempo depois disso. Ela segurou a mão dele até que os paramédicos lhe perguntaram se ela era a sua esposa. Três dias depois, recebeu um e-mail do diretor-geral. Esse incidente em seu ramo o fez decidir vender a rede e aposentar-se. A decisão foi suficiente para tirá-lo da depressão e fazê-lo começar a responder seus e-mails. Ele os respondeu de seu laptop, sentado em uma belíssima praia no Brasil. No longo e-mail que escreveu, frisou que ela tinha toda a razão e que repassaria o seu pedido cuidadosamente fundamentado para a nova diretoria. Quando apertou a tecla “enviar”, seu dedo tocou as asas de uma borboleta adormecida pousada no teclado do laptop. A borboleta agitou as asas. Em algum lugar do outro lado do mundo, ventos do mal começaram a soprar.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

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