sábado, 8 de agosto de 2020

Perispírito

[…] Perispírito, o perispírito a que Dr. Mota se referia com segurança. Ninguém pode abraçar um perispírito. Enfim evitava pensamentos: recorria a um meio de justificar a estranha glorificação.
Nesse estado, o sono me apavorava. Tinha sido um refúgio. Inficionara-se. Quando vinham bocejos e as pálpebras esmoreciam, eu saltava da rede, passeava no escuro, arrimava-me à cômoda. As pernas arrastavam-se à cama, vergavam. O torpor me agarrava e estendia — e dava-se a abominação. Laura surgia de novo, não a figurinha transparente: um ser membrudo e espesso, todo carne e osso. Os braços rijos seguravam-me, o peito largo caía sobre o meu, achatava-me, e era inútil qualquer esforço para desprender-me. Eu desejava acordar, fugir ao pesadelo, restituir à criança as qualidades anteriores: de algum modo me sentia responsável pela medonha substituição. Angústia, arrepios. E despertava arquejando, mordendo os beiços, em desespero. Bicho, bicho monstruoso — e afundava na tristeza, pedia a morte. As ilusões quebradas, em cacos. Tinha nojo de mim mesmo. Sujo, precisando água e sabão. Mas isto não me limparia, as manchas eram indeléveis. Dormir, esquecer a visão poluída. A noite não acabava, e às vezes a miséria se reproduzia. Terror, depois lassidão, repugnância.
Levantava-me cedo, tomava o café, dirigia-me ao Paraíba. Talvez o café me prejudicasse. Uma extensa lavagem, mergulhos e braçadas. Com certeza a minha gente perceberia o caso lastimoso. Devia ser efeito do café, um excitante. Abstive-me dele e bebi chá de folhas de laranja, sem proveito. Durante o dia ocupava-me em reconstituir penosamente o ídolo partido. Ao regressar do colégio, ia assistir aos ensaios na Escola Dramática Pedro Silva.
Não assistia. Insensível à declamação, esgueirava-me para trás dos bastidores, emboscava-me a uma janela, observava a cozinha de um prédio baixo, o quintal, onde floresciam roseiras. Apitos de trens, barulho de máquinas, carroças estrondeando no calçamento, numerosos cargueiros, estalos de buranhém. Isso misturava-se ao drama sanguinoso, em cinco atos e um prólogo, que decorria ali perto, além da floresta de pano, obra de Joaquim Correntão. O que me interessava era o jardim. Uma palmeirinha acenava-me de longe, sacudia-se, fazia-me promessas, que ordinariamente falhavam. Não obstante o rumor da rua, a tagarelice casada à voz do ponto, idas e vindas nas tábuas, tudo em redor permanecia deserto. Aferrava-me à espera inútil. Escurecia; os amadores guardavam as partes, deixavam o palco; o Pereira da iluminação, de escada ao ombro, subia a ladeira, ia acender os lampiões; as flores desbotavam; os leques da palmeirinha despediam-se, quase negros. Espionagem perdida. Bem. Necessário voltar. No dia seguinte o vulto de Laura surgiria entre as plantas, como um clarão.
Afinal houve resmungos: estranharam na Escola Pedro Silva a assiduidade, o esquisito amor ao teatro, que eu revelava dando as costas à cena, os cotovelos fincados no peitoril de uma janela. Assustei-me. Iriam conhecer o meu segredo? Se pudesse abrir-me com alguém, narrar alegrias e decepções, talvez conseguisse alívio. As confidências eram impossíveis.
Constantino, caixeiro novo da loja, autor de letras vulgarizadas no Dilúculo, reparou no abatimento e aconselhou-me, quis apresentar-me a Otília da Conceição. Recusei a proposta, vexado. Propriamente não a recusei: fugi do assunto ignóbil. Ao mesmo tempo achava-me ridículo, gaguejava, acanhado.
Mas os horrores noturnos cresciam, as olheiras se aprofundavam e alargavam na magrém pálida. E o moço renovou o conselho, citou o Dr. Garnier, ameaçou-me com a loucura. Realmente a obsessão já me havia endoidecido um pouco.
Tergiversei, relutei, sucumbi.
Um dia, ao lusco-fusco, demos um passeio, enveredamos pela Rua da Palha, entramos numa sala escura. Constantino falou baixo a alguém e retirou-se. Ao cabo de instantes vi-me num quarto, examinando, sério e encabulado, fotografias e santos que ornavam a parede, caixas de pó-de-arroz e frascos expostos na mesa forrada de papel. Otília da Conceição, à beira da cama, esperava em silêncio. Arriei sobre a mala pequena e, em silêncio também, comecei a descalçar-me. A vista se turvou, os dedos tímidos tremeram, o cordão do sapato deu um nó cego. Esforcei-me por desatá-lo: molhava-se de suor, cada vez mais se complicava. E o meu desgosto era imenso. Entrei em casa nauseado, engolindo soluços.
Correram semanas. Adoeci. A artrite amarrou-me à espreguiçadeira, o meu desgraçado corpo se cobriu de manchas. Capengando, abri a estante, exumei O Cortiço, desempacavirei-o, restituí-o à convivência dos outros romances. Não me inspirava curiosidade. E já não era objeto de aversão. História razoável, com alguma safadeza para atrair leitores.
Embrenhava-me agora em novelas russas. Entrevado, submerso na lona da cadeira, tentava erguer um braço doído, mexer os dedos, volver as páginas.
A figura que me perseguia à noite serenou e fugiu. E a outra, nuvem colorida, evaporou-se.
Graciliano Ramos, in Infância

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