Pelo
jeito, aquela uma ser noite memorável, inesquecível. Quincas Berro
Dágua estava num dos seus melhores dias. Um entusiasmo incomum
apossara-se da turma, sentiam-se donos daquela noite fantástica,
quando a lua cheia envolvia o mistério da cidade da Bahia. Na
ladeira do Pelourinho casais escondiam-se nos portais centenários,
gatos miavam nos telhados, violões gemiam serenatas. Era uma noite
de encantamento, toques de atabaques ressoavam ao longe, o Pelourinho
parecia um cenário fantasmagórico. Quincas Berro Dágua,
divertidíssimo, tentava passar rasteiras no Cabo e no Negro,
estendia a língua para os transeuntes, enfiou a cabeça por uma
porta para espiar, malicioso, um casal de namorados, pretendia, a
cada passo, estirar-se na rua. A pressa abandonara os cinco amigos,
era como se o tempo lhes pertencesse por inteiro, como se estivessem
mais além do calendário, e aquela noite mágica da Bahia devesse
prolongar-se pelo menos por uma semana. Porque, segundo afirmava
Negro Pastinha, aniversário de Quincas Berro Dágua não podia ser
comemorado no curto prazo de algumas horas. Não negou Quincas fosse
seu aniversário, apesar de não recordarem os outros havê-lo
comemorado em anos anteriores. Comemoravam, isso sim, os múltiplos
noivados de Curió, os aniversários de Maria Clara, de Quitéria e,
certa vez, a descoberta científica realizada por um dos fregueses de
Pé-de-Vento. Na alegria da façanha, o cientista soltara na mão do
seu humilde colaborador uma pelega de quinhentos. Aniversário
de Quincas, era a primeira vez que o festejavam, deviam fazê-lo
convenientemente. Iam pela ladeira do Pelourinho, em busca da casa de
Quitéria. Estranho: não havia a habitual barulheira dos botequins e
casas de mulheres de São Miguel. Tudo naquela noite era diferente.
Teria havido uma batida inesperada da polícia, fechando os castelos,
clausurando os bares? Teriam os investigadores levado Quitéria,
Carmela, Doralice, Ernestina, a gorda Margarida? Não iriam eles cair
numa cilada? Cabo Martim assumiu o comando das operações, Curió
foi dar uma espiada.
– Vai
de batedor – esclareceu o Cabo.
Sentaram-se
nos degraus da igreja do Largo, enquanto esperavam. Havia uma garrafa
por acabar. Quincas deitou-se, olhava o céu, sorria sob o luar.
Curió voltou acompanhado por um grupo ruidoso, a dar vivas e hurras.
Reconhecia-se facilmente, à frente do grupo, a figura majestosa de
Quitéria do Olho Arregalado, toda de negro, mantilha na cabeça,
inconsolável viúva, sustentada por duas mulheres.
– Cadê
ele? Cadê ele? – gritava, exaltada.
Curió
apressou-se, trepou nos degraus da escadaria, parecia um orador de
comício com seu fraque roçado, explicando:
– Tinha
corrido a notícia de que Berro D-água bateu as botas, tava tudo de
luto. Quincas e os amigos riram.
– Ele
tá aqui, minha gente, é dia do aniversário dele, tamos festejando,
vai ter peixada no saveiro de Mestre Manuel.
Quitéria
do Olho Arregalado libertou-se dos braços solidários de Doralice e
da gorda Margô, tentava precipitar-se em direção a Quincas, agora
sentado junto ao Negro Pastinha num degrau da igreja. Mas, devido,
sem dúvida, à emoção daquele momento supremo, Quitéria
desequilibrou-se e caiu de bunda nas pedras. Logo a levantaram e
ajudaram-na a aproximar-se:
– Bandido!
Cachorro! Desgraçado! Que é que tu fez pra espalhar que tava morto,
dando susto na gente?
Sentava-se
ao lado de Quincas sorridente, tomava-lhe a mão, colocando-a sobre o
seio pujante para que ele sentisse o palpitar do seu coração
aflito:
– Quase
morri com a notícia e tu na farra, desgraçado. Quem pode com tu,
Berrito, diabo de homem cheio de invenção? Tu não tem jeito,
Berrito, tu ia me matando... O grupo comentava entre risos; nos
botequins a barulheira recomeçava, a vida voltara à ladeira de São
Miguel. Foram andando para a casa de Quitéria. Ela estava formosa,
assim de negro vestida, jamais tanto a haviam desejado.
Enquanto
atravessavam a ladeira de São Miguel, a caminho do castelo, iam
sendo alvo de manifestações variadas. No Flor de São Miguel,
o alemão Hansen lhes ofereceu uma rodada de pinga. Mais adiante, o
francês Verger distribuiu amuletos africanos às mulheres. Não
podia ficar com eles porque tinha ainda uma obrigação de santo a
cumprir naquela noite. As portas dos castelos voltavam a abrir-se, as
mulheres surgiam nas janelas e nas calçadas. Por onde passavam,
ouviam-se gritos chamando Quincas, vivando-lhe o nome. Ele agradecia
com a cabeça, como um rei de volta a seu reino. Em casa de Quitéria,
tudo era luto e tristeza. Em seu quarto de dormir, sobre a cômoda,
ao lado de uma estampa de Senhor do Bonfim e da figura em barro do
Caboclo Aroeira, seu guia, resplandecia um retrato de Quincas
recortado de um jornal – de uma série de reportagens de Giovanni
Guimarães sobre os
subterrâneos da vida baiana –, entre duas velas acesas, com
uma rosa vermelha embaixo. Já Doralice, companheira de casa, abrira
uma garrafa e servia em cálices azuis. Quitéria apagou as velas,
Quincas reclinou-se na cama, os demais saíram para a sala de jantar.
Não tardou e Quitéria estava com eles:
– O
desgraçado dormiu…
– Tá
num porre mãe... – esclareceu Pé-de-Vento.
– Deixa
ele dormir um pouquinho – aconselhou Negro Pastinha. – Hoje ele
tá impossível. Também, tem direito...
Mas
já estavam atrasados para a peixada de Mestre Manuel e o jeito, daí
a pouco, foi despertar Quincas. Quitéria, a negra Carmela e a gorda
Margarida iriam com eles. Doralice não aceitou o convite, acabara de
receber um recado do doutor Carmino, viria naquela noite. E o doutor
Carmino, eles compreendiam, pagava por mês, era uma garantia. Não
podia ofendê-lo. Desceram a ladeira, agora iam apressados, Quincas
quase corria, tropeçava nas pedras, arrastando Quitéria e Negro
Pastinha, com os quais se abraçara. Esperavam chegar ainda a tempo
de encontrar o saveiro na rampa.
Pararam,
no entanto, no meio do caminho, no bar de Cazuza, um velho amigo. Bar
mal frequentado aquele, não havia noite em que não saísse
alteração. Uma turma de fumadores de maconha ancorava ali todos os
dias. Cazuza, porém, era gentil, fiava uns tragos, por vezes mesmo
uma garrafa. E, como eles não podiam chegar ao saveiro com as mãos
abanando, resolveram passar a conversa em Cazuza, obter uns três
litros de cana. Enquanto o cabo Martim, diplomata irresistível,
cochichava no balcão com o proprietário estupefato ao ver Quincas
Berro Dágua no melhor de sua forma, os demais sentaram-se para uma
abrideira de apetite por conta da casa, em homenagem ao
aniversariante. O bar estava cheio: uma rapaziada sorumbática,
marinheiros alegres, mulheres na última lona, choferes de caminhão
de viagem marcada para Feira de Santana naquela noite.
A
peleja foi inesperada e bela. Parece realmente verdade ter sido
Quincas o responsável. Sentara-se ele com a cabeça reclinada no
peito de Quitéria, as pernas estiradas. Segundo consta, um dos
rapazolas, ao passar, tropeçou nas pernas de Quincas, quase caiu,
reclamou com maus modos. Negro Pastinha não gostou do jeito do
fumador de maconha. Naquela noite, Quincas tinha todos os direitos,
inclusive o de estirar as pernas como bem quisesse e entendesse. E o
disse. Não tendo o rapaz reagido, nada aconteceu então. Minutos
depois, porém, um outro, do mesmo grupo de maconheiros, quis também
passar. Solicitou a Quincas afastar as pernas. Quincas fez que não
ouviu. Empurrou-o então o magricela, violento, dizendo nomes.
Deu-lhe Quincas uma cabeçada, a inana começou. Negro Pastinha
segurou o rapaz, como era seu costume, e o atirou em cima de outra
mesa. Os companheiros da maconha viraram feras, avançaram. Daí em
diante, impossível contar. Via-se apenas, em cima de uma cadeira,
Quitéria, a formosa, de garrafa em punho, rodando o braço. Cabo
Martim assumiu o comando.
Quando
a refrega terminou com a total vitória dos amigos de Quincas, a quem
se aliaram os choferes, Pé-de-Vento estava com um olho negro, uma
aba do fraque de Curió fora rasgada, prejuízo importante. E Quincas
encontrava-se estendido no chão, levara uns socos violentos, batera
com a cabeça numa laje do passeio. Os maconheiros tinham fugido.
Quitéria debruçava-se sobre Quincas, tentando reanimá-lo. Cazuza
considerava filosoficamente o bar de pernas para o ar, mesas viradas,
copos quebrados. Estava acostumado, a notícia aumentaria a fama e os
fregueses da casa. Ele próprio não desgostava de apreciar uma
briga. Quincas reanimou-se mesmo foi com um bom trago. Continuava a
beber daquela maneira esquisita: cuspindo parte da cachaça, num
esperdício. Não fosse dia de seu aniversário e cabo Martim
chamar-lhe-ia a atenção delicadamente. Dirigiram-se ao cais. Mestre
Manuel já não os esperava àquela hora. Estava no fim da peixada,
comida ali mesmo na rampa, não iria sair barra fora quando apenas
marítimos rodeavam o caldeirão de barro. No fundo, ele não chegara
em nenhum momento a acreditar na notícia da morte de Quincas e,
assim, não se surpreendeu ao vê-lo de braço com Quitéria. O velho
marinheiro não podia falecer em terra, num leito qualquer.
– Ainda
tem arraia pra todo mundo...
Suspenderam
as velas do saveiro, puxaram a grande pedra que servia de âncora. A
lua fizera do mar um caminho de prata, ao fundo recortava-se na
montanha a cidade negra da Bahia. O saveiro foi-se afastando devagar.
A voz de Maria Clara elevou-se num canto marinheiro:
“No
fundo do mar te achei
toda
vestida de conchas...”
Rodeavam
o caldeirão fumegante. Os pratos de barro se enchiam. Arraia mais
perfumada, moqueca de dendê e pimenta. A garrafa de cachaça
circulava. Cabo Martim não perdia jamais a perspectiva e a clara
visão das necessidades prementes. Mesmo comandando a briga,
conseguira surrupiar umas garrafas, escondê-las sob os vestidos das
mulheres. Apenas Quincas e Quitéria não comiam: na popa do saveiro,
deitados, ouviam a canção de Maria Clara, a formosa do Olho
Arregalado dizia palavras de amor ao velho marinheiro.
– Por
que pregar susto na gente, Berrito desgraçado? Tu bem sabe que tenho
o coração fraco, o médico recomendou que eu não me aborrecesse.
Cada idéia tu tem, como posso viver sem tu, homem com parte com o
tinhoso? Tou acostumada com tu, com as coisas malucas que tu diz, tua
velhice sabida, teu jeito tão sem jeito, teu gosto de bondade. Por
que tu me fez isso hoje? – e tomava da cabeça ferida na peleja,
beijava-lhe os olhos de malícia. Quincas não respondia: aspirava o
ar marítimo, uma de suas mãos tocava a água, abrindo um risco nas
ondas. Tudo foi tranquilidade no início da festa: a voz de Maria
Clara, a beleza da peixada, a brisa virando vento, a lua no céu, o
murmurar de Quitéria. Mas inesperadas nuvens vieram do Sul,
engoliram a lua cheia. As estrelas começaram a apagar-se e o vento a
fazer-se frio e perigoso. Mestre Manuel avisou:
– Vai
ser noite de temporal, é melhor voltar.
Pensava
ele trazer o saveiro para o cais antes que caísse a tempestade. Era,
porém, amável a cachaça, gostosa a conversa, havia ainda muita
arraia no caldeirão, boiando no amarelo do azeite-de-dendê, e a voz
de Maria Clara dava uma dolência, um desejo de demorar nas águas.
Ao demais, como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela
noite de festa?
Foi
assim que o temporal, o vento uivando, as águas encrespadas, os
alcançou em viagem. As luzes da Bahia brilhavam na distância, um
raio rasgou a escuridão. A chuva começou a cair. Pitando seu
cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme. Ninguém sabe como Quincas se pôs
de pé, encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos
apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a
lavar o saveiro, para os raios a iluminar o negrume. Mulheres e
homens se seguravam às cordas, agarravam-se às bordas do saveiro, o
vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada
momento. Silenciara a voz de Maria Clara, ela estava junto do seu
homem na barra do leme.
Pedaços
de mar lavavam o barco, o vento tentava romper as velas. Só a luz do
cachimbo de Mestre Manuel persistia, e a figura de Quincas, de pé,
cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o velho marinheiro.
Aproximava-se o saveiro lenta e dificilmente das águas mansas do
quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria. Foi quando cinco
raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do
mundo, uma onda sem tamanho levantou o saveiro. Gritos escaparam das
mulheres e dos homens, a gorda Margô exclamou:
– Valha-me
Nossa Senhora!
No
meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos
raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira.
Penetrava
o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na
tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria
vontade.
Jorge
Amado, in Quincas Berro-D’água
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