Ninguém
sabe até hoje como o incêndio começou. O velho casarão, no centro
da cidade, ardeu feito velho apaixonado por garotinha. A rua, deserta
um segundo antes do primeiro grito, se encheu de palpiteiros,
basbaques, gozadores...
O
corpo de bombeiros demorou porque todos os telefones das imediações
estavam com defeito. Alguns diálogos botavam mais lenha na fogueira:
– Nunca
entendi por que chamam esses caras de bravos soldados do fogo. Se
ainda fosse da água...
– Deve
ser porque nunca tem água.
De
fato, tinha mais cachaça na área que água da bica. Um carro-pipa
fora providenciado, mas batera numa ambulância dirigida por um
bêbado. Vários uniformes se desentendiam. Um comandante conservava
prudente distância. Era um sujeito adiposo e inepto, ex-torturador e
próspero comerciante no ramo de extintores especiais para prédios
condenados. Dois policiais militares, que davam segurança à
boca-de-fumo mais próxima, tentavam conter um chileno, radicado em
Niterói, conhecido como El Apagadíssimo, que aparecia em toda sorte
de sinistros, tentando tirar uma casquinha.
No
auge da confusão, chegou a reportagem de TV e todo mundo começou a
rasgar as roupas e a se sujar de fuligem pra aparecer na telinha. Um
compositor interiorano radicado aqui compôs um tema na hora e deu
declarações sobre a nova fase de seu trabalho. O refrão era: “ai,
ai, ai, ai, ai, dantes os dentes rangerrugiam nos assíduos
acidentes”.
Quando
o espetáculo ameaçava perder o pique, um homem saiu das chamas com
uma criança nos braços.
A
plebe foi acometida por aquele colapso do senso crítico que antecede
a exaltação de atos considerados virtuosos no consenso da
mediocridade (dá-lhe, Blanc!).
Senhoras
aureoladas de bobs, envoltas nas encardidas mortalhas dos roupões de
ílorzinha, experimentaram, na libido atrofiada, o êxtase das
protagonistas de novela. Parasitas e vadias viam nele o Salvador. De
todas as bocas maltratadas, do fundo dos pulmões corroídos, das
gargantas pustemadas, das línguas saburrosas, dos dentes cariados,
ééé, brotou a palavara mágica, espécie de aborto espontâneo que
acontece toda vez que a boçalidade é fecundada pela farsa:
– Herói!
Herói!
No
dia seguinte, os jornais celebraram a vinda do novo Messias. Fotos
indesmentíveis, como disse um Ministro, e editoriais candentes
colocaram suaves cataplasmas na ferida nacional: um brasileiro
íntegro.
A
euforia fincara seus estandartes no coração da miséria. Os bares
fervilhavam de palhaços que voltavam a crer em si mesmos. Donas de
casa suspirosas encontravam motivação, alento – e até mesmo um
certo tesãozinho – na figura redentora. Nunca o pavilhão
auriverde drapejou tão garboso nos mastros de empresas antes
maculadas pela corrupção. Economistas que serviram à ditadura
militar diziam, modestamente, de olhos úmidos.
– São
os primeiros frutos da economia de mercado. Dom Saulo Castilho não
perdeu a ocasião de perpetrar um soneto inesquecível. O final era
assim:
“Ao
contrário do mulato mequetrefe
move-o
o charme sutil de um grande chefe,
um
Cristo a redimir o balneário.
Espelhem-se,
medíocres operários,
que
só se preocupam com o que comem
no
saco elefantal do Super-Homem!”
O
assessor de imprensa da Presidência da República anunciou o novo
Imposto sobre Atos Heroicos.
Quarenta
e oito horas depois do portento, a mãe da criança – uma menininha
de dez anos que, infelizmente, faleceu por falta de atendimento
médico – veio a público:
– É
minha filha que foi sequestrada mês passado quando meus outros sete
filhos moireram fuzilados numa chacina lá no morro.
Nosso
herói foi convidado a depor. Todos ansiavam pelo esclarecimento do
lamentável equívoco. Mas, vida ingrata, a abstinência de cocaína
a que se viu forçado o Cid Campedor pelo acúmulo de solenidades e
homenagens, teve consequência inesperada: uma crise de choro e a
confissão de co-autoria em inúmeros crimes. No caso em questão, a
soldo de uma quadrilha de traficantes, mantinha a menina em cárcere
privado, e, cedendo a impulsos bestiais, tinha acabado de agarrá-la
quando ouviu os gritos de fogo.
Suplementos
culturais publicaram matérias de vários especialistas em mente
humana, unânimes quanto à intratabilidade do inconsciente. Um
defendeu o uso de remédios. Todos defenderam os respectivos bolsos.
O
tal compositor apareceu na TV, no horário vago entre dois pastores
da Igreja da Graça Estelionatária., falou de seu novo trabalho e
cantou o refrão de um hit inédito: “ai, ai, ai, ai, dentes de
dantes já não mordem como antigamantes”.
Dom
Saulo Castilho deu um pulinho no Vaticano, pra meter o pau na
Teologia da Libertação.
O
assessor de imprensa – já tá ficando chato, ô babaca! – deu
marcha a ré.
Donas
de casas frustradas passaram a bater nos filhos pra que não se
transformassem num monstro igual aquele. E, cheias de ódio,
persignavam-se.
Nos
bares, piadas sem graça tentam fazer frente à ressaca.
Vosso
um tanto amargo cronista cometerá o pecado da reiteração: com os
heróis, todo cuidado é pouco. Às vezes, o valente que irrompe das
chamas com a criança no colo não passa de um estuprador que não
teve tempo de largar a vítima.
Mas,
sei lá, não se desesperem. Como disse o Médici, vem aí a próxima
Copa do Mundo.
Aldir
Blanc, in Brasil passado a sujo
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