… na
verdade, eu já estava pondo o jantar na mesa quando bateram na
porta, eu mesma fui atender, um rapazote que eu mal conhecia me disse
que o Luca mandava me chamar, pr’eu ir “sem demora, dona Ermínia,
o seu Luca diz que é grave”, nem tive tempo de perguntar, naquele
susto nem sei que que poderia ter perguntado pro rapazote, que
escapuliu dali sem eu dar por isso, fiquei um instantezinho parada,
pensando, pensando coisas atropeladas, e já ia desfazendo o cinto do
avental enquanto ouvia a estridência das minhas crianças na mesa,
batendo na sua impaciência com os garfos nos pratos, só sei que,
sem mais pensar, joguei o avental numa das cadeiras lá da sala,
deixei todo mundo na copa me esperando, saí quase correndo com toda
essa minha corpulência, e logo estava no meio da rua, achando que a
qualquer momento eu ia ploft, sem ninguém pra me acudir, mas mesmo
naquele meu desabalo eu conseguia ouvir, vindo das casas, a
barulheira das famílias na mesa, e podia até dar conta dos risos, a
vida na hora do jantar em cada lar como lá em casa, e estava achando
até engraçado como eu, tão preocupada, uns pensamentos esquisitos
na cabeça, ainda podia pensar com um fio de atenção no que se
passava e, quando cheguei na casa lá do Luca, me assustei com o
rangido do portão de ferro, parecia até que alguma coisa de
sinistro já tinha acontecido e, enquanto afundava pelo corredor
lateral, notei que janelas e porta estavam fechadas, como numa casa
abandonada, fiquei um pouco depois parada, uma tremedeira nas pernas,
sem força nem pra subir aquele tico de degrau à minha frente e,
quando a porta se abriu sem que eu tivesse batido, foi um choque, não
porque o Luca aparecesse assim de repente no vão, mas porque era a
primeira vez que o via daquele jeito, a cara sem a vitalidade de
costume, parecia até que ele estava se mostrando pelo avesso, e o
que me intrigou foi dar pela sala um tanto em penumbra, e quando o
Luca disse “entre, Ermi” com a voz mais sumida que eu jamais
pudesse conceber aquele homem vigoroso e enérgico fosse capaz, só
sei que meu coração saltou pela boca, tinha os olhos formigando e,
tomada pela imagem de um menino triste e solitário, tudo que queria
perguntar era “e o Dinho, meu afilhado?”, mas nem consegui e,
quando o Luca se afastou um passo pra me dar passagem, foi então que
entrei na casa, cheia de uns pressentimentos, e ao levar a mão no
botão da luz, senti a mão do Luca se fechar firme no meu pulso e,
quando disse “não acenda”, fiquei mais perturbada ainda por não
ter compreendido por quê, e só perguntei “e o Dinho?” “e a
Lucila?”, e ele, sem responder, retirou a mão que me apertava,
continuamos calados, ainda que já pudesse ver melhor as coisas,
corri os olhos na barba crescida, no desleixo da roupa, e não estava
segura de ele ter murmurado qualquer coisa ao encará-lo, mas me
pareceu que tivesse dito “foi o pó da viagem”, que achei
estranho se fosse mesmo isso, ele que não era de viajar a parte
alguma, e como nem era mais o caso de fazer perguntas, só sei que,
numa passada de olhos, enxerguei melhor as coisas ali na sala, o vaso
de flores em cima da cristaleira, e foi aí que atinei pros
monsenhores que, há menos de vinte dias, a Lucila tinha trazido lá
de casa, e essa foi a última vez que a gente tinha se visto, até
estava fritando nem me lembro o que pro jantar, quando senti uma
sombra na cozinha, era a Lucila encostada na parede, quieta, quieta,
tive até a impressão que fazia tempo que ela estava ali, amarrotei
as mãos no avental e disse “Lucila!”, mas ela nem me olhava, o
rosto de fazer pena, e sem mais deixou a cozinha, foi o tempo de
apagar o fogo pra ir atrás dela que já estava atravessando a sala,
saindo num andar indiferente a tudo, e eu, sem descer a escadinha do
terraço pro jardim, fiquei observando a Lucila, alheada de mim,
colhendo sem pressa, haste por haste, os monsenhores, voltei a
chamá-la, mas ela nem sequer ergueu os olhos, até que, daquele
jeito desligada, saiu pra rua com a braçada de flores, e eu, só
pensando naquela esquisitice, continuei no terraço vendo com
amargura ela se afastar, e deviam ser os mesmos monsenhores que
estavam ali no vaso em cima da cristaleira, chamuscados pela chama de
um pavio ao lado, desses que são mergulhados num copinho com óleo,
tanto que as flores se encontravam murchas, talvez podres, exalando
mau cheiro, e nada fazia supor comida na casa, menos ainda sinal de
mesa posta e, notando tudo isso, parecia que eu estava começando a
pôr um pouco de ordem nas coisas, e isso me deu alguma segurança,
que é só um jeito de dizer, o que acontecia de verdade é que
estava me apertando tudo aqui dentro, ainda mais que achei de pensar
nessa minha falta imperdoável, eu que tinha me proposto desde aquele
dia dos monsenhores de vir à casa da Lucila, mas também é tudo tão
corrido, é uma loucura, nem naquele dia, nem no seguinte, nem em
outro, incrível como a gente nunca se pega com tempo, minhas
crianças me deixam maluca, por cima tinha ainda a cocozeira do
Zitinho, o meu mais novo, o dia inteiro com diarreia, imagine se o
Miro não me faz largar a escolinha rural logo depois do nascimento
do Tito, que é o meu segundo, imagine só… imagine o que não
seria agora, se possível alguma ordem, o dia inteiro as estripulias
das crianças, uma penca de demônios, a paciência do Miro é que me
consola, vive dizendo com ar sério “Mi, existe uma peneira que a
gente nem pode imaginar o tamanho, e quem trabalha com ela está
muitas vezes jogando a gente pro alto, mas tem horas em que tudo
entra na sua normalidade”, e eu até já disse que ele nem precisa
mais falar isso, que já não duvido nem um pingo que essa peneira
existe, mas toda noite que ele esquece um pouco os amigos e resolve
ficar em casa, depois da bagunça das crianças no jantar, depois que
deixei a cozinha arrumadinha, assim limpinha e quietinha no escuro, e
depois também de ter levado meus capetas pra cama, esses diabinhos
que são toda a minha vida, e depois que tudo já está dormindo na
casa, tudo certinho no seu lugar, aí então o Miro e eu vamos pro
terraço, a gente senta ali de luz apagada, uns barulhinhos de
insetos entre as folhagens, tudo tão romântico, é aí que o Miro
diz o que diz sempre nessas noites que fica em casa “você vê, Mi,
a peneira agora está descansando na mureta do terreiro”, e é
quase tudo que ele me diz, depois de já ter falado dos assuntos lá
do sítio, e eu ter falado da casa e das crianças, e é aí que o
Miro diz o que espero, só que não adianta eu falar, já falei mil
vezes pra não me dizer isso com aquele seu jeitão de caipira, que a
gente pode muito bem se recolher pro quarto sem aquela malícia toda,
mas ele só sabe rir naquele seu cacarejo de galo, mas que é verdade
é, que a peneira sem a malícia do Miro descansa em certas horas,
descansa mesmo, e que antes disso não adianta a gente se espernear,
como diz o Miro, não adianta mesmo, por isso que quando pensava na
Lucila e na trabalheira toda me impedindo de ir à casa dela, eu só
ficava pensando do jeito que o Miro pensa, que a gente só se mexe de
faz de conta, porque não é a gente na verdade que se mexe, que tudo
acaba entrando nos eixos, e que se não estava dando pr’eu ir à
casa da Lucila é que não estava dando mesmo, mas que tudo ia acabar
desaguando onde devia, se bem que essas coisas atrapalham a cabeça
da gente, porque, como estava pensando outro dia, ainda cruzo os
braços e quero ver quem vai limpar as belezuras do Zitinho, é muito
complicada essa história toda, por isso é que acho que o Miro tem
razão quando diz que a gente não deve pensar muito, que é besteira
eu ficar quebrando a cabeça, que nem é da minha conta ficar bulindo
nessas coisas, que meu problema são só a casa e as crianças, nada
mais que isso, a casa e as crianças, mas, por incrível que pareça,
naquele espaçozinho de tempo lá na casa do Luca eu estava às
voltas com esses fiapos, me embaraçando neles, e ninguém estranhe
não que isso tenha acontecido, ninguém pode imaginar que que pode
passar pela cabeça da gente em situação como aquela e até em
situação mais esquisita, é bem verdade que tudo se passa em
atropelo e misturado, mas, se a gente não toma cuidado, até uma
anedota pula fora da memória em velório, só sei que quando pensei
em perguntar pro Luca nem sei que que eu poderia ter perguntado, ele
já tinha se afastado um pouco, estava parado na entrada do quarto
que sai da sala, me aguardando de ombros e braços caídos, não é
possível que seja o Luca, não é possível que seja ele mesmo,
pensei, e foi aí que saí dos meus novelos, dei uns passos na
direção dele sem dizer nada e, assim que me aproximei, o Luca não
fez mais que abrir a porta e me dar passagem, logo se recolhendo, se
trancando mesmo, e isso me fez desistir de perguntar qualquer coisa,
e depois perguntar o que naquele momento, se nem tinha condições de
abrir a boca, além de ser em situação assim, como diz o Miro, é
melhor andar do que falar, daí que entrei no quarto, onde tinha um
par de sapatos no assoalho, arrumados, sapatos grandes, pros pés do
Luca, e me ocorreu que aquele quarto, que abria a janela pro quintal,
onde só tinha um guarda-roupa alto e uma cama de solteiro, o quarto
que eu sabia ser do Dinho, meu afilhado, fiquei perplexa só de
imaginar que era aquele então onde o Luca dormia, na certa todas as
noites separado da Lucila, quando poderia imaginar, esse homem que
despertava fantasias em tantas mulheres… é bem verdade que há
tempos corriam comentários maliciosos, que nem quero falar deles, e
essa lembrança mexeu comigo, senti um tremendo desconforto pensando
nesse caminho, mas logo fui acordada quando, pela segunda vez, senti
a mão do Luca me apertando o ombro, “ela deve estar no quarto
deles” ele disse, parecendo fazer muito esforço pra dizer tão
pouco, um pouco que foi a gota pra inundar meu raciocínio, eu já
não sabia pensar mais nada, achei melhor acompanhá-lo, atravessamos
a sala em silêncio, só as coisas na cristaleira é que vibraram um
pouco, e entramos pelo corredor onde no fundo a casa se comunica com
o escritório, mas no meio do corredor ele parou, e assim que abriu a
porta à direita, eu logo entrei nesse outro quarto, e ali no chão
um outro par de sapatos, menores que os do Luca, mas não tão
menores pr’um menino de treze anos, eram do meu afilhado eu não
tive dúvida, mas não parei por aí, vasculhei com os olhos até
onde aquela penumbra permitia, a cama de casal desarrumada, o lençol
amarfanhado deixando um tanto a descoberto o pijama do Dinho, não,
não é possível, eu só pensava e, profundamente transtornada pelas
coisas escabrosas que me passavam pela cabeça, foi com angústia
sufocante que vislumbrei a Lucila num dos cantos do quarto, de
cócoras, o olhar perdido, me afastei então apavorada, encontrando o
Luca parado ainda no corredor ao lado da porta, daquele mesmo jeito
de enforcado com os pés no chão, fiquei olhando pra ele, olhando
bem de frente, e sabendo que ele, mesmo de cabeça baixa, não podia
ignorar o modo como o olhava, tanto que não demorou e disse “quase
trezentos quilômetros de ida e outro tanto de volta num só dia,
cheguei e encontrei a casa e a cama deles assim”, e a voz sumida
não era a do Luca, continuei a encará-lo e foi quase um murmúrio o
que ouvi, mas distingui muito bem cada palavra, “coisas que não
ouso falar”, e quando emendou “deixei nosso Dinho num colégio
interno”, senti que ele não tinha mais nada pra dizer, deixei o
Luca no corredor, acendi a luz do quarto e voei pro canto onde a
Lucila estava e, chegando bem perto, não sabia o que fazer, acabei
me dobrando de frente com as mãos apoiadas nos joelhos, um esforço
pra me manter arcada, e fiquei olhando demoradamente pra ela na
esperança de encontrar um ponto de luz naquele seu olhar embaçado
que não me enxergava, sofrendo ao vê-la encurralada no canto, a
saia do vestido tinha descido pro colo, deixando as pernas,
magríssimas, descobertas e, mesmo com o rosto bem perto do rosto
dela, não ouvia sua respiração, tive o pressentimento de que a
Lucila tinha entrado irremediavelmente num túnel de onde não sairia
nunca mais, se entregando a um fim sem volta, meus olhos ficaram
molhados, passei a chorar quando dei pelo ruído intermitente dos
pingos que caíam no assoalho, não queria acreditar, e foi então
que sua imagem inteligente, petulante, desafiadora, me explodiu na
memória, dizendo no nosso tempo de curso normal, naquele seu jeito
exuberante, cheia de rebeldia, “nós não passamos de umas fêmeas
menstruadas”, e eu ali, arcada, fiquei balbuciando em solidariedade
feito uma tonta “fêmeas menstruadas”, “fêmeas menstruadas”,
e repetia aquelas palavras de outro tempo, mesmo sem saber que
solidariedade era essa…
Raduan
Nassar, in Obra completa
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