terça-feira, 30 de junho de 2020

A noviça

Minha avó, quando me via triste, eu vivo triste desde pequeno, a minha avó dizia “tristezas não pagam dívidas”, e até cantava uma música popular dizendo isso. Ela era aleijada, andava numa cadeira de rodas, tomava mil remédios, de manhã, de tarde, de noite, pílulas, xaropes, injeções, e era uma mulher alegre. Ou seria fingimento? Pena de mim? Na família éramos apenas nós dois. Minha mãe morreu no meu parto, meu pai morreu de tanto beber, mas eu desconfio que ele se matou.
Todo domingo eu levo minha avó à igreja. Ela reza. Eu finjo que rezo, ela ficaria muito infeliz se soubesse que o neto dela não acredita em Deus, em santos, em rezas.
Eu trabalho numa empresa de contabilidade. Sou um dos muitos contadores que trabalham num escritório ordinário sem ar-refrigerado, e no verão aquilo é um inferno. No fim do ano sou presenteado com um peru, desses que são engordados com hormônios sintéticos. Jogo aquela porcaria no lixo.
Não tenho namorada. Elas querem se divertir. Mulher só gosta de homem triste se ele for muito rico. Não pensem que sou misógino. Eu gosto das mulheres, gosto de ir para a cama com elas. Mas só quem me atura são as prostitutas.
Então a minha avó morreu. Eu nem disse o nome dela. Maria da Graça. Ela me contava a origem do seu nome mostrando uma medalha. Uma santa que teve uma visão, os sagrados corações de Jesus e Maria, o de Jesus cercado por uma coroa de espinhos e a arder em chamas, e o de Maria também em chamas e atravessado por uma espada, cercado de 12 estrelas. Ao mesmo tempo a santa ouviu distintamente uma voz dizer-lhe: “Manda cunhar uma medalha. As pessoas que a trouxerem, com devoção, hão de receber muitas graças.” E a minha avó me mostrava a medalha, dava um beijo na medalha e pedia para eu também dar um beijo na medalha. Eu beijava.
Fiquei ao lado da minha avó, que morria. Ela agarrou a minha mão e disse “meu netinho querido, você vai ficar sozinho no mundo, sem a sua avó para cuidar de você, por isso eu quero que você use esta medalha bendita”, e tirou a medalha presa num cordão do pescoço. “Promete que vai usá-la sempre.”
Prometo”, eu disse.
Nesse momento ela morreu, e tive a impressão de que ela sorria, feliz.
Passei a usar a medalha, por dentro da camisa, é claro. E também, conforme outra promessa que fizera à minha avó, todos os domingos eu ia à missa, bem cedinho, no horário em que ela ia. Eu não rezava, ficava lá, sentado, pensando na vida. Um dia uma mulher me perguntou:
E aquela simpática senhora que sempre o acompanhava? Não vem mais? Eu sinto falta dela, sua presença me tranquilizava.”
Era a minha avó. Ela faleceu.”
Sinto muito. Ela era muito simpática.”
Quando a missa terminou, era ainda muito cedo.
Você já tomou café?”, a mulher perguntou.
Não... não...”
Aqui perto tem um lugar ótimo, servem um café com torradas muito bom. Eu o convido. Está bem?”
Agora?”, respondi, titubeante.
Sim”, disse a mulher, me pegando pelo braço.
O bar era um lugar simpático. Notei então, depois que sentamos, que a mulher era uma jovem muito bonita.
Meu nome é Silvia.”
O meu é Rodrigo.”
Todos os domingos, depois da missa, tomávamos café juntos. Um dia Silvia me disse que queria me contar uma história.
Fui educada em colégio de freiras. Meu pai queria que eu me tornasse freira. Ele dizia sempre que vivíamos num mundo imoral, devasso, libertino, lascivo, que precisava salvar a filha dele desses perigos e a única forma era eu me tornar freira. Ser freira é um processo complicado. Você tem tempo e paciência para ouvir?”
Sim, claro.”
É preciso ser católica, ser solteira. Você não pode ter outro relacionamento, seria uma distração para o chamado de Deus. Tem que escolher uma comunidade para a qual deseja se dedicar. Tem que deixar claro que pretende se comprometer seriamente. A instituição então irá avaliar o seu caso. Serão discutidos assuntos concretos como datas, lugares e procedimentos. E se faz uma reunião com a diretoria.”
Complicada, essa coisa.”
Mais do que você pensa. O processo pré-seletivo (no qual ambas as partes estão interessadas e trabalhando juntas) pode levar de um a três anos. Você precisa ter certeza absoluta do que quer na vida — esse é um compromisso verdadeiramente sério. Ele também é conhecido como postulado. Você já trabalhará com as outras irmãs, mas arcando com as próprias despesas (é por isso que deve ter uma situação financeira razoável antes de começar). Para dar início a todo o processo, deve-se escrever uma carta.”
Uma carta?”, perguntei. De vez em quando eu usava uma palavra que Silvia acabara de dizer e fazia uma pergunta.
Sim, uma carta em que deve ficar claro o seu interesse em fazer parte da comunidade. O processo seletivo normalmente dura de seis meses a dois anos e termina quando ambas as partes considerarem que já é a hora. Rodrigo, eu prendi a sua atenção com a minha história e você não tomou o seu café nem comeu a sua torrada.”
Na verdade eu não tinha a menor ideia sobre o que ela estava falando. Eu sempre ficava encantado com a beleza de Silvia, o som da sua voz, seus dentes perfeitos.
Apressadamente mastiguei uma torrada.
Posso continuar?”
Sim, sim, por favor.”
Até aqui você já terá se tornado um membro da comunidade, mas sem um compromisso definitivo. Você será chamada de ‘Noviça’. Pelas leis da Igreja, esse período dura um ano, mas muitas instituições levam até dois anos. Parte do motivo que faz com que o processo demore é para que você não tenha dúvidas de que está tomando a decisão certa para si mesma. Então disseram que iam raspar a minha cabeça, antes de eu fazer os votos finais.”
Esta frase da Silvia eu entendi: raspar a cabeça.
O quê? Raspar a cabeça? Raspar a sua cabeça?”, perguntei horrorizado, contemplando os lindos cabelos de Silvia.
Mas eu não raspei. Quando soube o que eu teria que fazer como freira, desisti no noviciado. Sabe qual o papel de uma freira?”
Rezar?”
Sim, só que na verdade a única função da freira é pedir dinheiro. Mas isso pode ser feito por qualquer um. Não precisa ser freira para isso. Em suma, a existência de freiras e ordens religiosas não tem finalidade nenhuma, sendo um tremendo desperdício de tempo, energia, recursos e tudo o mais. Compara uma freira com um padre. O padre é importante, tem uma igreja, ouve confissões, perdoa, vira bispo, vira cardeal, vira papa. E a freira é uma mera pedinte. Quando percebi isso tudo, abandonei o convento. Meu pai havia falecido e assim ninguém se opôs ao meu gesto. Tenho uma confissão a lhe fazer. Não sou mais católica. Acredito em Deus e vou à igreja pensar em Deus. Agora chega, vamos falar de você.”
Eu sou... sou... Não creio em Deus, nem no Diabo.”
E por que vai à igreja?”
Prometi à minha avó.”
Você entende de contabilidade?”
Sou contador diplomado.”
Eu preciso de um contador para arrumar as finanças do meu pai. Pago bem.”

Fui trabalhar para Silvia. Na casa dela.
Certa ocasião ela pediu para eu dormir lá. À noite entrou no meu quarto vestindo uma camisola.
Rodrigo, tenho um pedido a fazer.”
Sim.”
Eu sou virgem.”
Sim.”
Quero deixar de ser. Você me ajuda?”
Confesso que fiquei quase tão nervoso quanto Silvia. Mas depois tudo foi ficando cada vez melhor.
Esta é uma história de amor. Vou terminando por aqui, pois não quero parecer piegas.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

Nenhum comentário:

Postar um comentário