segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A hora

O escritor inglês Aldous Huxley tinha uma teoria curiosa, a de que a maturidade de certos artistas não depende da sua idade cronológica, mas de uma espécie de precocidade misteriosamente programada para coincidir com uma vida curta. Ninguém pode dizer o que Mozart faria se tivesse vivido mais do que os trinta e poucos anos que viveu, mas ele dificilmente ficaria mais “maduro” do que já era. Os últimos quartetos de corda de Beethoven, considerados a sua obra mais perfeita, foram compostos pouco antes da sua morte aos 57 anos. Já Verdi morreu com mais de 80 anos, não muito depois de escrever o que dizem ser a sua ópera definitiva, Falstaff, e Goya teve que esperar a velhice e toda a sua amargura para produzir suas melhores gravuras e as fantásticas “pinturas negras” que nunca mostrou ao público, mas são o seu grande legado à história da arte e da consciência humana.
A teoria de Huxley, improvável mas literariamente atraente, pressupõe um certo poder profético do artista. Shakespeare escreveu A tempestade com 47 anos, sem saber que seria sua última peça (ele morreu com 52), mas ela tem o tom adequado de um testamento e de uma despedida, com o mago Próspero, senhor de todos os dramas e tramas vistos sobre o palco, declarando seu sortilégio acabado e anunciando sua aposentadoria em Milão, onde cada terceiro pensamento será sobre a sua sepultura. O final da peça é tão adequado que se suspeita que tenha sido acrescentado depois da morte do autor, mas pode-se imaginar Shakespeare, de volta a Stratford-on-Avon e acossado por maus pressentimentos, dando o mote para todos os artistas ainda por vir: quando pensamentos sobre a sepultura começam a se tornar muito frequentes, apresse-se e providencie seu legado definitivo. Está chegando a hora, não importa a sua idade.
O poeta W. H. Auden, comentando a especulação de Huxley, levou-a ainda mais longe. Disse que os artistas morrem quando querem, ou quando devem, e que não existem obras de arte incompletas. Un po troppo, como se vê.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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