quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Situação complicada porque Souza não entende as manobras do sobrinho, que parece estar enrolando muito

Não sei onde ando com a cabeça. A casa do meu sobrinho. Será que sou tão desligado assim? Então Adelaide tinha toda a razão. Vai ver é o sol. A gente amolece, nem se lembra das coisas. Neste abafamento, tudo perde a importância. O que interessa é uma sombra.
Um pouco de ar fresco, aguinha gelada. Tenho os lábios rachados, aliás todos nesta casa têm. Não dá para admitir isso. Nem sei onde é a casa do meu sobrinho. Ele jamais me convidou. Disse, um dia, que mora bem, Adelaide até desconfiava que fosse nos Palácios de Acrílico.
Nem tenho o telefone, o endereço. Se precisasse dele numa emergência, não teria como chamar. Não, não deve ser nos Palácios de Acrílico, onde ficam os superfuncionários. O sobrinho é competente, mas ainda não chegou aos escalões dos invisíveis mordomizados, essa nova raça.
Moleza sem tamanho, me encosto na cama, cochilo gostoso, o ventilador movimenta ar quente, embarco... abro os olhos, tudo quieto, imagino um cheiro podre... calmo...
Como é? Vai dormir quantos dias?
Cochilei um pouco.
Um pouquinho só. Pensamos que tivesse morrido, dormiu um dia e meio.
Um dia e meio?
Teu sobrinho veio providenciar as mudanças.
Anos atrás me incomodaria ter dormido tanto, perdido tempo. Agora, se pudesse, mergulhava no sono e acordava o mês que vem, daqui a um ano. Hibernar, como os ursos. Hibernar, não. Veranizar, à espera de tempos frescos e confortáveis. É, parece que ainda não acordei.
Como é, tio, não arrumou as coisas?
Nem vou arrumar, levem o que quiserem.
A gente escolhe?
Antes preciso saber se não dá para ter minha casa de volta, eu sozinho.
Não dá, não. É sobre isso que eu quero falar. Vem mais gente.
Mais?
Quatro pessoas.
Que tráfico misterioso você pratica?
Abrigo gente que podia morrer sem teto.
Ah, é? E por que não cuida daqueles que estão nos Acampamentos.
Tio, vem me falar dos Acampamentos? Aquela gente está condenada, não dá para contar com eles. Enquanto estes homens são técnicos importantes.
Técnicos? Em quê?
Não vai escolher nada?
Nada! Levem logo.
Ajudo os homens a amontoar tudo na sala de visitas. Mesas, cadeiras, cristaleiras, o bar de cedro. Não estou ligando. Cada copo da cristaleira foi comprado por Adeleide aos poucos. Nunca tivemos dinheiro para um aparelho de uma só vez. Um dia ela chorou por um conjunto de xícaras.
Um par de xícaras cor-de-rosa, letras douradas: ELE-ELA. Foi da mãe dela. Ganharam no dia do casamento. Cada semana, Adelaide abria a cristaleira, lavava as xícaras, tirava o pó das prateleiras de vidro. Depois trancava tudo a chave, ninguém mais abria, apenas ela.
Um pontapé na cristaleira. Arranco copos, xícaras, cálices, taças, licoreiras, compoteiras, miniaturas. Atiro pela janela. Um a um. Só atirava o próximo depois de ouvir a louça se despedaçando na calçada. Os homens gostaram da brincadeira. Entraram também.
Essa é minha”, gritei quando o homem que comia doces apanhou a xícara cor-de-rosa. Com tamanha fúria que ele se assustou e deixou cair. Apanhei os cacos, soltei de novo no chão, pisei. A outra, atirei para a rua. Os vizinhos logo estavam na janela, protestando.
Ficou maluco, tio?
Me divirto.
A tia adorava essas xícaras.
Pois é. E onde está ela?
Onde está?
Na sua casa, tenho certeza!
Por que na minha casa?
Você aceitou com naturalidade a ausência dela. Nunca me perguntou sobre Adelaide. Vocês se adoravam. Eram mãe e filho, grudados. Quando pensei nisso, fiquei tranquilo. Adelaide está com você. Não está?
Não respondeu, foi dar ordens. Se é que havia ordens a dar. Mas Militecnos adoram lideranças, comandos, se julgam logísticos, estrategistas. Mesmo que seja dentro de um apartamento, numa faxina, mudança. São capazes de comandar uma ida ao banheiro, o puxar da descarga.
Continuei jogando minha tralha pela janela. Bateram à porta. Claro, só podia ser a vizinha de lábios pintados. Não era. Ando ruim de pressentimentos. Era o velho que vive tocando a Patética. Quer saber se é mudança, ou o quê. Entrou pela sala, extremamente magro.
Tipinho frágil, branco, idade indefinida. Vinte ou cem anos. Fortes entradas, e cabelos brancos muito compridos desciam pelos ombros, escorridos. As mãos, no entanto, lisas, perfeitas, como se ele tivesse vinte anos. Um olho bom, azul, e o outro de vidro, imóvel.
Não quero me intrometer. Pensei que o senhor estivesse brigando com sua mulher. Sou amigo dela, vim ajudar.
Não ia ajudar muito se fosse briga mesmo.
É o que o senhor pensa.
Eram amigos?
Muito. Ela subia à tarde, tocávamos a Patética juntos. Ela podia ter sido uma grande pianista. Por que desistiu?
Por conta dela, nunca me falou sobre o assunto. Há pouco tempo pensei nisso. E me senti mal, fiquei pensando se fui eu que a bloqueei.
Sua mulher carregava problemas, era muito contida. Se controlava o tempo todo, não se soltava, nem na música se permitia, sempre fixada à pauta, insatisfeita, obcecada. Custei a convencê-la de que a pauta era uma linha a seguir, correta se o pianista se ativesse a ela, porém fria. Depois, muito depois de ver o que eu fazia em cima da composição, passou a se aventurar, como dizia, a colocar situações dela. Foi descortinando a liberdade com muito medo, pois quem passou anos amarrado tem os movimentos atrofiados, precisa muita ginástica e espaço e orientação para se repor. Sentir que podia fazer o que bem desejasse transformou completamente sua cabeça, penso que foi por essa razão que desapareceu. Não subiu mais e muitas vezes toquei a Patética por tardes e noites sem parar, procurando mexer com ela, esperando a todo momento que me batesse na porta.
Quando foi isso? (Perguntei enquanto pensava: tocava e me enchia.) – Dois meses atrás, deixe-me ver, a descoberta dela se deu há dois meses e pouco, numa tarde em que fiz doce de banana, e meu intestino se enrolou, essas bananas factícias não funcionam, passei mal que o senhor nem calcula. Fiquei atrapalhado, nem podia me sentar para ouvi-la, precisava correr para o banheiro. Inquieto, suava, me segurava, quase rachei a dentadura de tanto que rangi os dentes com as cólicas. Aquela tarde era importante para ela, e foi para mim também, pois consegui até me abstrair das cólicas e mergulhar na Patética dolorida que ela me passava.
Estranha Adelaide. Foi aí que se afastou de mim e ficou apenas à espera de um ponto para se agarrar. Algo que justificasse o rompimento. Amadurecia a ideia na cabeça, rezava por um momento. Um modo de me dizer sem me ferir. Ao menos tivemos isso todos esses anos.
Não nos machucarmos. Todo dedos um com o outro. Nenhuma agressão. Discussões amáveis, um acabava concordando quando o tom subia. Vivendo mansamente. Vivendo? Ah, malandra, você percebeu antes de mim. Se ao menos tivéssemos o costume de dizer o que se passava dentro de nós.
Ela está dormindo?
Foi-se embora.
Para onde?
Sumiu.
Não deixou bilhete?
Foi por isto aqui.
Um furo na mão?
Pois assustou Adelaide.
Não pode ser. Era mulher tranquila. Tinha visto outras pessoas com furo na mão. Dois alunos meus têm. Ela subia, eles estavam ao piano. No primeiro dia ela achou estranho, com o tempo se acostumou. Nada é anormal nesta cidade.
Traição, Adelaide! Sinto como se estivesse sendo traído. Esse homem sabe mais a teu respeito que eu através desses anos todos. Não vale. Se tivesse imaginado, teria aprendido piano, ficávamos os dois a tocar, a conversar. Sim, sim, estou entendendo, agora vejo tudo.
Quem sabe eu teria ido junto quando você se foi. Ao se descontrolar, você se liberou de mim. Ao me abandonar, me fez te descobrir. O furo na mão foi pretexto, simples e ocasional tábua de salvação. Bastou se mostrar abalada, desaparecer. Terei tempo para te dizer tais coisas?
Tem mais gente em casa? Está um barulhão na cozinha.
O senhor é curioso, hein?
Gosto de gente. Faz bem para mim. Quase não saio, vez ou outra visito parentes, mas estão sempre comendo.
Então não vai gostar dessa gente daqui. Também vivem na cozinha comendo.
Parentes?
Amigos de meu sobrinho. Esse aí, esse aí é meu sobrinho.
Capitão?
Capitão. O senhor conhece a hierarquia.
O professor mora no prédio?
Dois andares acima. Há vinte e oito anos.
Gosta daqui, então?
Detesto, queria morar num barril como Diógenes, não posso nem ver essa velharada. Que ideia desse governo de colocar velhos dum lado, quarentões do outro, jovens separados.
Nossos Planificadores para o Bem-Estar Social sabem o que fazem. A sociedade tem se comportado, responde à altura.
O senhor fala como um documento oficial.
O professor mora sozinho?
Hum, hum.
Que tal uns companheiros?
Inquilinos?
Digamos, companheiros. Amigos. Por algum tempo.
Vai arranjar sarna para se coçar, vão ocupar sua casa, como ocuparam a minha (tentei advertir).
Não tem nada de ocupação. O tio está perturbado com o desaparecimento da tia. Vai ser bom para o senhor.
Se ninguém mexer em meu piano.
Trato pessoalmente disso, ninguém toca em seu piano.
É, mas tem outro problema. Não sei se vai dar.
Professor, não existem problemas para nós.
Existe para mim. O meu pijama.
O pijama?
É, o pijama! Um problema sem tamanho, me persegue pela vida afora.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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