sábado, 28 de dezembro de 2019

Jardim das delícias

Quem disse foram as Escrituras Sagradas. Elas contam que Deus estava infeliz. O vazio em que vivia lhe dava tédio. Por isso teve um sonho. Sonhou com um jardim – pois não há nada que dê mais alegria que um jardim. Decidiu-se, assim, a plantar um jardim para ficar alegre. Começou nos confins do vazio, criando as grandes estrelas, o Sol, a Lua, e foi afunilando, afunilando, até chegar a um lugar bem pequeno, onde plantou o seu sonho: o Paraíso. Fontes, árvores frutíferas, flores, pássaros, borboletas, animais de todo tipo, e até um vento fresco e perfumado que soprava nas tardes. Cecília Meireles resumiu essa estória num minúsculo poema enorme: “No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta./No planeta, um jardim./ No jardim, um canteiro./E no canteiro, o dia inteiro/ Entre o mistério do Sem-Fim e o planeta/A asa de uma borboleta...”. Era o jardim das delícias, destino dos homens, destino do universo, o destino de Deus! O Paraíso era melhor que o céu. Prova disso é que Deus passeava pelo jardim ao vento fresco da tarde... Terminado o seu trabalho de seis dias Deus parou de trabalhar. Entregou-se então àquilo para que o trabalho havia sido feito: uma deliciosa vagabundagem contemplativa. Os olhos olharam para o jardim e experimentaram o êxtase da beleza! “E viu Deus que era muito bom...” Os olhos de Deus brincavam com o jardim. Nada havia para ser feito. Havia tudo para ser gozado.
Vejo as pessoas religiosas fechar os olhos para orar. Elas creem que, para se ver Deus é preciso não ver o mundo. Elas não sabem que a beleza da natureza é o espelho onde Deus se contempla. Os versos de Helena Kolody podiam estar gravados na entrada do Paraíso: “Rezam meus olhos quando contemplo a beleza”. “A beleza é a sombra de Deus no mundo.”
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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