sábado, 28 de dezembro de 2019

Edmund Wilson

Edmund Wilson era uma raridade nos Estados Unidos, um autêntico e desavergonhado homem de letras. Os intelectuais americanos sempre tiveram um certo escrúpulo de parecerem homens cultos. Wilson fez uma profissão da cultura. Na biografia autorizada da maioria dos novelistas americanos que ganharam notoriedade nos anos 30, os anos da primeira grande crise do capitalismo industrial nos Estados Unidos, há um esforço transparente em dar como credenciais a experiência mais imediata e proletária possível da crise. Os que não foram boxeadores ou vagabundos antes de começarem a escrever foram choferes de caminhão ou lavadores de prato — até um aprendizado jornalístico era inconfessável, pelo que poderia sugerir de sofisticação literária —, e para todos “cultura” era sinônimo de uma sensibilidade inadequada à experiência urbana do novo mundo, quando não de afetação e bichice. (Hemingway dedicou a vida a convencer os outros do seu machismo. Nelson Algren até hoje gosta de ser fotografado fumando charuto e jogando pôquer com seus amigos marginais.) Wilson, por sua vez, pulou de Princeton, uma das mais aristocráticas universidades da aristocrática Nova Inglaterra, diretamente para o mundo enclausurado das pequenas revistas de crítica e do establishment acadêmico, com frequentes tours pelas ruínas da alta cultura europeia. Jamais lavou um prato na vida. Mas, paradoxalmente, foi o primeiro crítico do seu país a situar as raízes da nova literatura americana na crise social do seu tempo.
Wilson compreendeu que os novelistas dos anos 30 procuravam transformar a violenta experiência da América num fato novo também da imaginação, enquanto a cultura europeia se exauria tentando conciliar ideias antigas e nova realidade. O paradoxo de uma sensibilidade aristocrática revelando aos revolucionários a sua própria revolução, como Wilson fez com seus contemporâneos americanos, se explica. Não era a cultura clássica da Europa que informava a sua perspicácia e sim sua filha bastarda, a tradição herética que frutificara na revisão marxista. Mas assim como Wilson explicava, mas não imitava o estilo proletário dos seus contemporâneos (segundo o crítico George Steiner, Wilson escrevia a prosa mais elegante da América), também nunca foi um catequizador marxista. A percepção política era apenas um componente a mais da sua erudição.
Wilson limitou sua prosa elegante quase que exclusivamente ao ensaio e à crítica. Sua obra de ficção mais conhecida — Memories of Hecate Country — deve sua fama mais ao escândalo do que à qualidade literária: foi proibida em vários estados da América devido às suas descrições eróticas explícitas para a época, tímidas hoje em dia. Nos seus últimos anos, Wilson se notabilizou pela excentricidade. Andou envolvido com o governo por ter se negado a pagar seu imposto de renda, alegando que não tinha direito a nenhuma opinião sobre como o seu tributo seria usado, e, portanto, o reservava para seu próprio uso. Um de seus últimos livros publicados é uma elegia à velha casa senhorial na qual se refugiara da violência americana que tanto excitara sua imaginação na prosa dos outros, mas que agora só ofendia a sua sensibilidade aristocrática. Um velho e paradoxal homem de letras.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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