sábado, 30 de novembro de 2019

Recessão no Nordeste, quem trabalha está ameaçado de morrer à noite. E os bolsões de calor aumentam, só o guarda-chuva de seda preta resiste

(Narração feita pelo homem que costuma se sentar sempre à ponta da mesa. Souza ouviu, lembrando-se, como professor de História, da primeira cruzada arrasando Jerusalém, em 1099, tal como foi relatada por D’Agiles em História Francorum Qui Ceperunt Hierusalem: “Entre os sarracenos, uns tinham a cabeça cortada, o que era para eles a sorte mais doce; outros, atravessados por flechas, se viam obrigados a saltar do alto das torres; ou-tros ainda, após longo sofrimento, eram entregues às chamas e por elas consumidos. Viam-se nas ruas e nas praças da cidade pedaços de cabeças, de mãos, de pés. Infantes e cavaleiros abriam caminho através de cadáveres. Mas tudo isso ainda era pouco. Vamos até o Templo de Salomão, onde os sarracenos tinham o costume de celebrar as solenidades de seu culto! Que aconteceu nesses lugares? Se dissermos a verdade, ultrapassaremos os limites do inacreditável”.) O homem que se senta sempre à ponta da mesa contou: – Trabalhei numa tecelagem até que ela se fechou. Quando tudo se acabou no Nordeste, vim embora. Mais ou menos no Fim da Grande Época dos DIs. Os Deís, como o povo chamava lá em cima, eram os Decididamente Incompetentes. Você deve se lembrar, eles dominaram o país por seis anos. Três governos, cada um de dois anos. Os golpes de Estado funcionaram como relógio. A cada setecentos e trinta dias, um novo Deí substituía o anterior, demonstrando incompetência ainda maior que seu antecessor. Os Deís apenas não eram incompetentes para encher os próprios bolsos. Se quisessem, saberiam governar. No entanto, o Esquema estava manipulado, de modo que os postos se mantivessem entre eles, inacessíveis a qualquer cidadão. Ora, estou chovendo no molhado, um professor de História sabe disso melhor do que eu. Afinal, sou apenas um Operário Esclarecido. Ao menos, me considero um produto daqueles homens ótimos e lúcidos, exterminados no Período dos Mentirosos Crônicos. Meu pai desapareceu naquele tempo, engolido. Bem que os Operários Esclarecidos tentaram se movimentar, se arregimentar, abrir as cabeças dos trabalhadores. Os Mentirosos Crônicos castraram as lideranças, sufocaram os rebeldes, amaciaram os dúbios, compraram os fracos, enganaram todo mundo. Novidade nisso? Nenhuma. Posso dizer que sou um Operário Esclarecido porque não comecei como trabalhador comum. Fiz universidade, peguei meu diploma de sociologia e caí no vazio. Procurando emprego, procurando. Cata daqui, pega de lá, acabei na organização do pessoal numa tecelagem média do Alto São Francisco. O rio tinha entrado em agonia após anos de devastação em suas margens. Eliminada a cobertura vegetal, vieram as erosões, o escoamento superficial aumentou, assim como o assoreamento dos rios, das barragens e dos cursos de água. Quando o São Francisco se reduziu a um filete tentando sobreviver na areia quente, o povo ficou maluco. Com razão. Açudes secos, barragens vazias, o gado morto na caatinga, o sol esquentando, crianças morrendo. Elas não resistiam. A Grande Época dos Deís coincidiu com o fim das crianças no Nordeste. Elas foram exterminadas antes que o Esquema iniciasse o processo geral da esterilização do povo por causa dos acidentes com usinas nucleares. Havia dias em que a fábrica era um forno medonho, pessoas desmaiando, sufocadas, suando em bicas, se desidratando. Eu indagava onde íamos parar. Não havia possibilidade de deter nada, era um processo bola de neve, desencadeado muitos e muitos anos atrás. Modificar o clima? De que jeito? Empurrar o sol para cima? Era o que dava vontade para se livrar da quentura que arrancava a pele, ardia a cabeça, torrava os pés. A terra era areia, ou pedras. Me batia o desespero por não poder mover uma palha. Colocar de novo as montanhas no lugar, plantar a mata, puxar água do fundo da terra e transformá-la em rio? Tá brincando? Estou, é o jeito. Chegar ao governo e denunciar. Denunciar o quê, estava tudo denunciado. E acaso não foram as denúncias que conduziram aos Tempos Lamentáveis das Imensas Escamoteações, quando o Esquema mentia e enganava, fazia, desfazia e negava? Há anos os governantes se isolaram, inacessíveis, inabordáveis, imunes a qualquer contato com a população. Adiantava falar com as pessoas, pobres coitadas, preocupadas, e como, com o trabalho, a comida, o dia a dia? Elas me perguntavam: “Está bem, o que a gente faz? Para de trabalhar? Reclama com o patrão e é despedido? Organiza um movimento, assina um manifesto?”. Tinham razão, quantos movimentos foram planejados e boicotados? E os milhares de manifestos que estão arquivados, se é que estão, no túmulo da memória nacional? O problema era não provocar demissão. A perda do emprego significava morte para a família inteira. Estar na fábrica representava uma cota de água, mínima, um salário vergonhoso, a garantia da maloca em que se morava. A insegurança era imensa, quem estava desempregado fazia tudo para arranjar um posto. Tudo. O que amanhecia de gente morta nos terrenos, nos subúrbios das cidades, era inacreditável. Criaram-se patrulhas destinadas a recolher os corpos cada manhã. Percorriam os arrabaldes e traziam os cadáveres dos assassinados com paus, pedras, peixeiras, tiros, socos, pontapés. Havia fossos em volta das fábricas, em torno de qualquer lugar onde houvesse gente trabalhando. Valas, como na Idade Média, cercando castelos. Os empregados eram escoltados para suas casas e até patrulhas se viam atacadas, porque vigia e segurança também eram profissões. Percorria a caatinga, manhãzinha, e sofria enjoo, ânsia de vômito, a cabeça latejava. Me lembro de um velho filme, célebre no passado, que a televisão reprisa, você deve ter visto. Chama-se E o vento levou , e tem uma hora que a câmera sobe numa estação ferroviária e mostra o chão coalhado de mortos. Cena fantástica, clássica no cinema. Jamais se tinha visto tanto morto junto. Coisa de filme, se dizia. Hoje sei, não é. (Ouço, pensou Souza, com o mesmo horror com que li a história da primeira cruzada sobre Jerusalém. Cada palavra de D’Agiles, o historiador, me ficou gravada. De repente, estava tudo reproduzido, não no ano 1099, mas na entrada do século XXI, No templo e no pórtico de Salomão cavalga-se com sangue até o joelho do cavaleiro e até as rédeas do cavalo.) Depois de algum feriado, a violência era maior, não sei se pela bebida, se por causa do descuido. Ninguém suportava ficar em casa o tempo inteiro, sem sair nunca. Viver prisioneiro. Morar entre quatro paredes, ir para o emprego em furgões blindados, encerrar-se na fábrica por doze horas, temer a chacina diária. Conviver a cada instante com a possibilidade de morrer, preparar-se. Fomos nos habituando, de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia, aceitando-a como cotidiano. Me espanta essa capacidade de acomodação da mentalidade, sua adaptação ao horror. Acredito que a gente possua um componente de perversidade que nos leva a encarar como normal esse pavor, a desejá-lo às vezes, desde que não nos toque. Uma porcentagem de perversidade que tem sido alimentada pelo Esquema, essa coisa tão abstrata, que consegue se manter em meio à anarquia, ao caos estabelecido como ordem, à anomalia mascarada em progresso. Não me interrompa, me deixe falar, botar para fora, vomitar o que vi e engoli e aceitei. Me sentia como os judeus caminhando ordenadamente para os fornos crematórios de Auschwitz, Dachau. Conhecedores e impotentes, esperançosos, até a hora do forno, na expectativa de que o fogo se apagasse, o gás perdesse o efeito mortífero, os aliados chegassem para salvá-los. Aí é que me pergunto, podemos lutar pela salvação isolados, individualizados, ou temos de contar com auxílios exteriores, amparo? Fizeram tudo para massificar, ao mesmo tempo que isolaram cada pessoa em si, tornando-a ferozmente individualista, fechada para o outro, sem apoio e sem querer apoiar, medrosa da própria personalidade. Você me acha louco, sinto no jeito com que me olha. Pode ser que seja. Prefiro estar. Minha vontade é que tudo isso seja mentira, delírio. A viagem pelas estradas, à noite, derreteu meu cérebro, fui deixando os miolos em fiapos pelo caminho. Tudo que tenho dentro é uma nuvenzinha leve, sombra do que foi uma cabeça que raciocinava, que me fazia agir. Acho que procuro desculpas para não carregar um grande peso. Eu olhava aquele Nordeste devastado, campo de batalha medieval. Horrorizado a cada novo dia, porque o sol levantava sobre o sangue seco das pessoas mortas no escuro. Porque eram pessoas que tinham emprego. E cada morte representava uma vaga, disputada violentamente nos portões das fábricas, numa guerra surda, não disfarçada, consentida e incentivada pelas empresas, ignorada pelo Esquema. Na minha cabeça ressoavam as palavras de Isaías: “Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhes os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. Então eu disse: Até quando Senhor? Ele respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem moradores e a terra seja de todo assolada e o Senhor afaste dela os homens e no meio da terra seja grande o desamparo. Estava previsto. Oh! Povo meu! Os que te guiam te enganam, e destroem o caminho por onde deves seguir”. Tudo ali, dois mil anos, escrito e repetido, finalmente realizado. Tire daí o que se refere ao Senhor e a ficção científica se concretizou. Engraçado é que fugimos de lá, viemos para cá, e encontramos a mesma coisa. Empregados contra desempregados, na guerra mais violenta desde a do Paraguai. E sobre tudo o sol. A impressão é que ele desce milímetro a milímetro. Não sei se é possível, não sei nada de ciência. Possível ou não, a gente olhava para cima e a cabeça estourava, os olhos lacrimejavam. Começou a ficar impossível sair de casa. As pessoas passaram a usar chapéus, e não adiantava. Veio o tempo de guarda-chuvas. Alguém descobriu que o sol não atravessava guarda-chuvas de seda preta. Só os de seda. Outro pano não resistia. Dois, três dias de uso, o pano se esfarelava. Menos a seda preta. Ela resistia, protegia, formava uma sombra agradável. Não me pergunte por quê. Não me pergunte nada. Ninguém me respondeu, ninguém responde coisa alguma neste país. Havia outra situação estranha, curiosa. As regiões de quentura. Verdadeiros bolsões em que era impossível ficar, passar, atravessar. Você ia andando, mergulhava naquele calor insuportável. Corria, tentando escapar, porque às vezes o bolsão era pequeno, a gente se livrava logo. No fundo, era um divertimento. Dramático, mas engraçado, porque subitamente alguém a sua frente punha-se a pererecar, gritar, voltava correndo. Voltavam todos, sabia-se que era um bolsão. Mais tarde, quando fizemos a grande travessia, vimos que os bolsões existiam por toda a parte. Eram imensos em certas regiões, estendiam-se por quilômetros. Até que chegou o Tempo Intolerável. Não dava mais para se expor ao sol. Você saía à rua, em alguns segundos tinha o rosto depilado, a pele descascava, a queimadura retorcia. A luz lambia como raio laser. Com o tempo, o perigo nos bolsões de soalheira, como o povo chamava, aumentou terrivelmente. Quem caía dentro não se salvava. O sol atravessava como verruma, matava. Ao menos era a imagem que a gente tinha, porque a pessoa dava um berro enorme, apertava a cabeça com as duas mãos, o olho saltava, a boca se abria em busca de ar. Num segundo o infeliz caía, duro, sem se contorcer. A gente via, a alguns passos, a pessoa murchando, secando, desidratada, a pele se desgrudava como folha seca, mais um pouco e os ossos dissolviam. Não acredita, não é? Nunca ouviu falar disso. Ninguém falou, a imprensa jamais noticiou. Os cientistas foram estudar e ficaram perplexos. Apenas conseguiram determinar que os bolsões aumentavam gradualmente, em porcentagem semanal. Fizeram mapas, a população recebeu gráficos, mudaram o trânsito da ruas, as pessoas se deslocaram, alteraram estradas. As crianças brincavam empurrando cachorros e gatos para dentro dos bolsões. Até que os animais se transformaram em comida e não se deixava mais desperdiçá-los. Os Civiltares utilizavam os bolsões como castigo. Jogavam presos, desafetos, inimigos, subversivos na soalheira e esperavam. Desaparecido o corpo, sem testemunhas, não há crime, diz a lei. Para conseguir confissões ameaçavam as pessoas no limite dos bolsões: Fala, ou te jogo aí. Falavam. Claro, os bolsões à noite desapareciam. Deve ser aquele fenômeno comum ao deserto. Quente de dia, frio de noite. As famílias andavam pelas ruas, cercanias da cidade, em busca das cinzas de parentes que imaginavam consumidos. Não havia como reconhecer quem. Guiavam-se por conhecimentos relativos, baseando-se em dados frágeis: a mãe que tinha mandado o filho à venda, recomendando cuidado com o bolsão da praça. O pai que tinha ido ver um leilão de carne-seca nos arrabaldes. A filha que tinha ido à loja. A tia que tentava visitar uma avó. Namorada querendo se encontrar com namorado. Procura inútil, todo mundo sabia. Ninguém seguro de que estava levando para casa as cinzas certas. Podia ser um bezerro morto, se bem que bezerro fosse coisa rara, preciosa. Na verdade, ninguém suportava ficar dentro de casa. Saíam à noite e se encontravam. Os amigos ajudavam na procura. Ninguém saía só, formavam-se grandes grupos, com medo de ataques dos Caçadores Implacáveis de Empregados. Passeios temerosos, as pessoas sobressaltadas. Se alguém avistava um grupo, desviava-se logo. E o que se via, se pudesse ser visto do alto, era quase um balé, gente indo, vindo, desviando-se, voltando, encontrando outro grupo, se afastando, rodeando, andando de costas, girando. Maluquice, seu! Alguém suporta uma tensão dessas? Até que ninguém mais saiu. De dia ou de noite. Nem aqueles que tinham guarda-chuvas de seda preta. Não confiavam na invulnerabilidade. Também não adiantava sair. Estava tudo fechado. O padeiro não fazia pão, não existia farinha, nem mesmo a factícia. Os bares esgotaram estoques. A farmácia não tinha nem comprimido. Os fornecedores não chegavam, supunha-se que haviam sido apanhados pelos bolsões em algum ponto da estrada. Os açudes esvaziaram. Quem trabalhava podia se abastecer na subsistência das fábricas, no entanto mesmo estas, apesar de muito estoque, começaram a esvaziar. As pessoas se divertiam um pouco jogando pelas janelas os restos de comida, se é que sobrava, o lixo das casas, os papéis, bobaginhas. Às vezes, o lixo se incendiava em pleno ar antes de cair. E então não houve mais possibilidade de viver. O povo resolveu fugir. A vida intolerável. Sabe o que a gente fazia quando estava apertado, barriga solta? Esperava a noite, ia lá fora. No dia seguinte, o sol incinerava. As noites eram escuras, a energia tinha-se esgotado. Verdade, chegaram ao Nordeste alguns geradores de energia solar. Sabe com quem ficaram, não sabe? Com os últimos coronéis, com as famílias que mandavam, com aqueles ligados às Multinter. Puxa, você deve estar pensando, não havia mais nada de bom? Tinha, a vontade daquele povo de viver, não se entregar. Por isso começou a sair. Uma decisão automática, inconsciente, maciça. Os grupos começaram a partir à noite, protegidos pelos Caça-Empregados. Para eles, quanto mais gente se fosse, melhor. Instigavam, açulavam.
O quê? Açulavam?
É, açulavam.
Faz, no mínimo, sessenta anos que ninguém usa essa palavra, achei engraçado.
Ah, vê se me leva a sério.
Levo até demais. Mas que estranhei, estranhei. E daí?
Os Caça-Empregados praticamente começaram a obrigar as pessoas a migrar. As pessoas esperavam a noite entrar e o calor diminuir. Só alta madrugada refrescava mesmo e aí tudo gelava. Era um período relativamente curto, de três, quatro horas. Cada um levava sua mala, pacote, saco, gaiola. Havia caixotes que precisavam de dois, três para sustentar. Puxavam carrinhos com roupas, quadros, estatuetas, bugigangas. Incrível como as pessoas não se desprendem das coisas, se apegam a objetos, dependem deles, sentem-se inseguras, apavoradas. A primeira leva foi trágica. Quando a manhã chegou, estava em plena estrada, a alguns quilômetros da vila. Veio o sol e todos estavam dentro de um bolsão. Perceberam que iam morrer. Olharam em volta, procurando abrigo. A estrada cortava a caatinga, a terra gretada. O asfalto derretido, em bolotas, se esparramava para os lados do que tinha sido a pista. Alguns voltaram correndo. Um ou dois chegaram e mereciam medalhas de ouro olímpicas pela velocidade. Contaram. Os retirantes viam aqui e ali uma casa, um abrigo abandonado. Se amontoavam, se acotovelavam, pulavam uns sobre os outros, disputando a réstia de sombra. Chegavam a derrubar a casa de pau a pique, tanta gente entrava. Outros corriam, corriam na esperança de sair do bolsão. Outros ainda colocavam sobre a cabeça o que podiam. Roupa, telha, chapéu, tábua, quadro, guarda-chuva. O solo fervia, o chão queimava a sola dos pés. E o que se via era a dança mais incrível, todos pulando, os pés mal tocando o solo e se erguendo como que impulsionados por molas. Pulavam e gritavam de dor. À medida que o dia crescia, a dança da morte ao sol aumentava em intensidade. Parecia um ataque histérico, um transe coletivo, o santo baixado em todo mundo. Logo, ia diminuindo. O sol comia as roupas, os quadros, os guarda-chuvas que não eram de seda preta. Lambia os cabelos, a pele, as carnes, os ossos. Pelas nove da manhã sobravam montes de cinzas espalhados pela terra, misturados ao asfalto derretido. Quem tinha sobrevivido nos poucos abrigos esperava a noite para recomeçar a marcha. Tinham visto as pessoas se consumirem. Sem orientação, tomavam as estradas que iam para o Sul. Os gráficos dos bolsões não adiantavam. Os indicadores não se encontravam nos lugares, talvez fossem realmente móveis. Em compensação, surgiam outros. As pessoas sabiam que a caminhada seria cheia de voltas, teriam de contornar as reservas das Multinter, territórios proibidos a brasileiros, você conhece bem o assunto. A esperança era que no Centro, no Leste e no Sul existissem cidades que o sol não tivesse atingido. – Bom, mas os bolsões também atingiam as reservas, não atingiam? As empresas afinal não são tão poderosas assim que conseguissem formar uma barreira contra o clima. – Não tenho a mínima ideia. Nunca entrei. Os que moravam lá e eram brasileiros foram obrigados a sair e não se sabe o que acontece dentro. O mistério é esse. – Alguém sabe! – Pois é, me mostre esse alguém! Continuo? Está bem. Aos poucos, a multidão engrossava com as correntes vindas de outras cidades. Se encontravam nos cruzamentos, no meio dos campos. Atravessavam aldeias, a população se juntava. Os doentes permaneciam, ficavam acenando das janelas, das portas. Vi muitas famílias levando os velhos para o meio da rua, a pedido deles mesmos. Queriam esperar o dia nascer. Não podiam caminhar, não queriam ficar sozinhos, decidiam pelo meio da rua. Colocavam os velhos em grupos, e eles, tranquilos, se punham a conversar, as mulheres de terço na mão, esperando o sol. Alguns, não! Gritavam, esperneavam, tentavam acompanhar o estirão. Muitos acompanharam até o fim, até chegar a esta cidade. Todo mundo dizia: “Vamos para a cidade estrela, lá dá para viver, comer, trabalhar” . – Eu me lembro, meses atrás, quando era permitido, a televisão noticiou essa marcha. Filmaram os retirantes de helicóptero e era de impressionar a massa que se deslocava. Parecia visita do papa. Lembra-se das fotos da década de oitenta quando o papa visitou o país? Aquela multidão que não acabava mais, aclamando. Meu Deus, como o povo andava necessitado de líderes naquele tempo. Era um período de transição, não entendiam que a era dos líderes estava acabada, não surgiria mais nenhum. Sentiam-se órfãos, desamparados, sem condutor.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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