Na
morte de Antonio Maria Aí está, meu Maria... Acabou. Acabou o seu
eterno sofrimento e acabou o meu sofrimento por sua causa. Na
madrugada de 15 de outubro em que, em frente aos pinheirais destas
montanhas queridas, eu me sento à máquina para lhe dar este
até-sempre, seu imenso coração, que a vida e a incontinência já
haviam uma vez rompido de dentro, como uma flor de sangue, não
resistiu mais à sua grande e suicida vocação para morrer.
Acabou,
meu Maria. Você pode descansar em sua terra, sem mais amores e sem
mais saudades, despojado do fardo de sua carne e bem aconchegado no
seu sono. Acabou o desespero com que você tomava conta de tudo o que
amava demais: o crescimento harmonioso de seus filhos, o bem-estar de
suas mulheres e a terrível sobrevivência de um poeta que foi o seu
melhor personagem e o seu maior amigo. Acabou a sua sede, a sua fome,
a sua cólera. Acabou a sua dieta. Aqui, parado em frente a estas
montanhas onde, há trinta anos atrás, descobri maravilhado que eu
tinha uma voz para o canto mais alto da poesia, e para onde, neste
mesmo hoje, você deveria chamar porque (dizia o recado) não
aguentava mais de saudades – aprendo, sem galicismo e sem espanto,
a sua morte. Quando a caseira subiu a alegre ladeirinha que traz ao
meu chalé para me chamar ao telefone – eram nove da manhã – eu
me vesti rápido dizendo comigo mesmo: “É o Maria!” E ao descer
correndo para a pensão fazia planos: “Porei o Maria no quarto de
solteiro ao lado, de modo a podermos bater grandes papos e rir muito,
como gostamos” E ainda a caminho fiquei pensando: “Será que
Itatiaia não é muito alto para o coração dele?...” Mas você,
há uma semana – quando pela primeira e última vez estivemos
juntos depois de minha chegada da Europa, numa noitada de alma aberta
– me tinha tranquilizado tanto que eu achei melhor não me
preocupar. Eu sabia que seu peito ia explodir um dia, meu Maria, pois
por mais forte e largo que fosse, a morte era o seu guia.
Outra
noite, pelo telefone, ao perguntar eu se você estava cuidando de sua
saúde, você me interpelou: “Você tem medo de morrer, Poesia?”
“Medo normal, meu Maria”, respondi. “Pois olhe: eu não tenho
nenhum” retorquiu você sem qualquer bravata na voz. “Só queria
que não doesse demais, como na primeira crise. Aquela dor, Poesia,
desmoraliza.”
Mas
como eu descesse – dizia – para atender à sua chamada, e
atravessasse o salão da casa-grande, e entrando na cabine ouvisse
(como há 14 anos atrás ouvi a voz materna) a voz paternal de meu
sogro que me falava, preparando-me: “Você sabe, Antônio Maria
está muito mal...”: e eu instantaneamente soubesse... – justo
como naquela época soube também, quando a voz materna, em sinistras
espirais metálicas, me disse do Rio para Los Angeles: “Sabe, meu
filho, seu pai está muito mal”, o nosso encontro marcado deu-se
numa dimensão nova, entre o mundo e a eternidade: eu aqui; você...
onde, meu Maria? – onde? Ah, que dor! Agora correm-me as lágrimas,
e eu choro embaçando a vista do teclado onde escrevo estas palavras
que nem sei o que querem dizer.
Há
uma semana apenas conversamos tanto, não é, meu Maria? Você ainda
não conhecia minha mulher, foi tão carinhoso com ela... Tomamos uma
garrafa de Five Stars no Château, depois fomos até o Jirau e
terminamos no Bossa Nova. Eu ainda disse: “Você pode estar bebendo
e comendo desse jeito?” “Por que, Poesia? Não há de ser nada...
Qualquer dia eu vou morrer é assim mesmo, num bar...”
Eu
só espero que não tenha doído muito, meu Maria. Que tenha sido
como eu sempre desejei que fosse: rápido e sem som. Mas é uma pena
enorme. Você tinha prometido à minha mulher, a pedido dela, que
recomeçaria hoje, nesta quinta-feira do seu recesso, no seu “Jornal
de Antônio Maria” o seu “Romance dos pequenos anúncios”, que
foi uma de suas melhores invenções jornalísticas e onde eu era
personagem cotidiano: você sempre a querer fazer de mim, meu pobre
Maria, o herói que eu não sou...
Mas
por outro lado, sei lá... Você disse nessa noite, à minha mulher e
a mim, que nem podia pensar na ideia de sobreviver às pessoas que
mais amava no mundo: sua mãe, seus dois filhos, suas irmãs e este
seu poeta. “E Rubem Braga”, acrescentou você depois, brincando
com ternura, “Eu não queria estar aí para ler quanta besteira se
ia escrever sobre o Braguinha...”
Não
irei ao seu enterro, meu Maria. Daria tudo para ter estado ao seu
lado na hora, para lhe dar a mão e recolher seu último olhar de
desespero, de maldição para esta vida a que você nunca negou nada
e o fez sofrer tanto. Daqui a pouco o sino da casa-grande tocará
para o almoço. Verei minha mulher descer, triste de eu lhe ter dito
(porque ela dorme ainda, meu Maria...) e de me deixar assim sozinho,
sentado à máquina de escrever, com a sua morte enorme dentro de
mim.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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