Afiar
o cálamo ou a ponta da haste da pena de ganso com que escreveria
deve ter ajudado muito escritor a pensar na primeira frase. Não
fazemos outra coisa senão repetir este ritual de preparação, ou
protelação, da primeira frase, dando uma atenção neurótica aos
nossos instrumentos. Há os que apontam todos os seus lápis antes de
começar a escrever, mesmo que depois escrevam a tinta. Os que
transformam o correto enchimento de uma caneta-tinteiro (lembra
caneta-tinteiro?) numa provação litúrgica, para merecerem a
inspiração. Outros arrumam e rearrumam sua mesa de trabalho, numa
espécie de oferenda aos deuses da simetria, para que eles retribuam
organizando seus pensamentos. Por uma boa primeira frase faz-se tudo,
e sei de gente que só escreve depois de um banho purificador, ou
depois de passar meia hora atirando uma bola contra uma parede, ou de
encher folhas e folhas com arabescos. (Dizem que aproveitaram tudo do
Profeta: seus textos no Corão e seus rabiscos na decoração dos
templos.) Mas nada se compara ao lento desbastamento de um cálamo,
para pensar na primeira frase. Deve ser por isso que antigamente
escreviam tanto, e tão melhor: quando acabavam de afiar as penas com
capricho, todo o livro já estava pensado e pronto, s ó bastava
botá-lo no papel. E como está provado que antigamente o tempo
passava mais devagar, tudo se explica, ou tudo nos explica.
Não
existe equivalente a afiar o cálamo para quem escreve num computador
— salvo desmontar e remontar o aparelho, o que nenhum escritor sabe
fazer. Ficamos reduzidos a manobras diversionistas: qualquer coisa
para não enfrentar a primeira frase. Gostei de saber que o Chico
Buarque também fica jogando paciência em vez de trabalhar. Nossa
desculpa é que não estamos jogando, estamos distraindo a nossa
atenção enquanto pensamos. Para evitar a primeira frase tenho me
concentrado nos ícones do computador e agora mesmo — toda esta
crônica, como já se percebeu, é um pretexto para não escrevê-la
— me dei conta de que o símbolo para tempo no computador é uma
ampulheta. Não a face de um relógio ou um quartzo pulsante, uma
ampulheta! Quantas dessas crianças que já nascem com um notebook
embaixo do braço sabem o que é uma ampulheta? E no entanto ali está
ela, a única maneira que o computador encontrou de nos dizer para
esperar um pouquinho. Um anacronismo desconcertante. Eram ampulhetas
que os escritores de antigamente tinham ao seu lado, para lembrá-los
dos prazos de entrega enquanto afiavam o cálamo. No fundo, mudou
tudo no nosso ofício menos a angústia.
Pronto.
Agora só me falta uma boa última frase.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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