terça-feira, 15 de outubro de 2019

As diferenças entre Miúdo e vovô Jake

Por mais de três dias se defrontaram no tabuleiro. Olhando para eles, jamais se diria que eram aparentados. Miúdo tinha 22 anos, mas seu rosto macio e suave o fazia parecer seis anos mais jovem, ainda no balbucio da adolescência. Vovô tinha 99, e era quase sempre lúcido, porém era presa dos lapsos gaguejantes da senilidade. Miúdo, como a maioria dos homens sob o peso desse apelido, tinha, descalço, 1,92m de altura e castigava as balanças com 135 quilos. Vovô tinha 1,62m com as botas de cowboy e pesava pouco mais de 50 quilos, se bem que geralmente afirmasse, à menor provocação, que já tivera 1,80m e pesara 100 quilos, antes que o trabalho árduo e as mulheres ainda mais árduas o tivessem encolhido, e que, se ainda estivesse à distância de um pio da flor da sua mocidade, ele te chutaria a bunda como se fosse lenha e a empilharia antes que os galhos e os gravetos beijassem o chão. Miúdo, felizmente, era tão amistoso quanto o vovô era ranzinza, tão plácido quanto o velho era feroz e beligerante.
As diferenças de temperamento se transformaram em estilos. Miúdo gostava da pureza linear e aberta do jogo de damas. Vovô preferia o jogo de baralho com cartas marcadas, em que sua força está nos seus segredos e você voa rumo ao olho do caos montado no próprio fantasma. Miúdo começava a trabalhar ao nascer do sol. Vovô só se agitava ao meio-dia. Miúdo não se incomodava de lavar a louça. Vovô cozinhava – habilidade adquirida à força com a adoção de Miúdo, e que, estranhamente, veio a apreciar–, mas só fazia o jantar, era sua única refeição: o café da manhã era omitido no sono, o almoço, uma xícara de café e um gole do Velho Sussurro da Morte. Miúdo bebia pouco – em geral, só um gole antes de ir para a cama, a fim de brecar os sonhos; vovô bebia muito, em geral meio litro por dia, para pôr os sonhos em movimento.
Miúdo pescava com iscas que ele próprio fazia, para grande desgosto de Jake; este usava minhocas, sempre usara minhocas, não via porra nenhuma de errado em usar minhocas, e afirmava que estaria servindo sorvete de casquinha no inferno antes mesmo que considerasse a ideia de pescar com um punhado de penas de galinha amarradas num anzol.
Miúdo ria, bem-disposto e constante. Vovô cacarejava, roncava, bufava, latia e rugia.
Miúdo tinha dentes fortes e bem formados. Vovô tinha gengivas fortes e bem formadas, além de cinco dentes, dois deles se juntavam quando fechava a boca, ajudando-o a comer.
Miúdo não gostava de sonhar. Vovô Jake sonhava agora constantemente, como um graveto levado pelo rio.
Suas diferenças, apesar de numerosas, eram superficiais; suas semelhanças eram poucas, mas tinham um alicerce: eram ligados pelo espantoso amor que tinham um pelo outro, uma amabilidade que ia além da mera tolerância, uma compreensão sanguínea daquilo que movia seus corações. A princípio, Jake tentara arduamente, e até além da conta, tirar Miúdo para fora de sua casca, bombardeava-o com doces, bolas de beisebol, caminhões de brinquedo, varas de pescar e biscoitos de chocolate, atenção total e uma permissividade apaixonada e sem limites. Quando Lottie Anderson lhe informou que as crianças da idade de Miúdo gostavam de caixas de areia, vovô encomendou a Barney Wetzler, da firma Pedreiras Irmãos Wetzler, 30 metros cúbicos de areia limpa do rio. Imaginando que todo moleque deveria ter um cachorro, em um mês vovô Jake lhe deu quatro: um par de filhotes walker, um spaniel brittany e um mestiço beagle teimoso de nome Patrão (que, sem s benefícios do uísque do vovô, viveu 18 anos como companheiro de Miúdo, até que um enorme porco-do-mato chamado Cerra-Dente o abriu ao meio, dos testículos ao pescoço. Patrão, por pura e infatigável vontade, conseguiu se arrastar até a casa e arranhar a porta antes de morrer).
Jim Dodge, in Fup

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