sábado, 4 de maio de 2019

Martírio


Você conhece a velha piada: É fácil deixar de fumar, eu mesmo já deixei mais de 100 vezes. Ou a do cara que passa a usar uma piteira comprida porque o médico lhe disse para afastar-se do cigarro. Mas não há nada de engraçado com uma pessoa tentando livrar-se do vício. Outro dia, por exemplo, prenderam o estrangulador.
É que eu deixei de fumar, delegado...
E daí? Isso é desculpa para estrangular 17 pessoas?
Eu não sabia o que fazer com as mãos...
Como eu nunca fumei, não tenho muita paciência com o martírio dos amigos que deixam de fumar. Antes eles eram intragáveis, por assim dizer, com aquele ar de superioridade e falso autodesprezo que todo viciado assume diante de nós, inocentes.
Você não fuma, é? Faz muito bem. Eu já estou perdido...
Mas estava implícito na sua atitude que cada baforada era um gosto do doce prazer da perdição que eu jamais sentiria e que, por não fumar, eu era ingênuo, trouxa, contraído e provavelmente virgem. Agora são insuportáveis na sua dependência. E eu sou intransigente na minha superioridade.
Me dá uma bala.
Não tenho.
Um chiclé.
Não tenho.
Me dá esse lápis para mastigar.
Não dou.
Deixa eu roer as tuas unhas que as minhas já acabaram.
Não deixo.
Eles são nervosos, os que deixaram de fumar. Engordam, emagrecem como os outros respiram. Alguns mantêm um cigarro apagado sempre no canto da boca ou entre os dedos e o usam para gesticular, cheirar e amassar furiosamente no cinzeiro antes de tirar outro da carteira. E não aceitam cigarro oferecido.
Eu tenho os meus, obrigado.
É de cortar o coração, concordo. Mas eu não me comovo.
Afinal, quem demorou tanto tempo para descobrir que botar fumaça para dentro dos pulmões, deixá-la dar as suas voltas lá dentro e depois expelir pode fazer mal à saúde não merece compaixão. Alguns engordam demais com privação do cigarro e, aí sim, têm a minha compreensão. Eu só sou solidário no peso. É fácil fazer regime, eu mesmo começo um novo todas as segundas-feiras. Mas não adianta, sou viciado. Em cigarro de chocolate, inclusive, embora não trague. Uma vez combinei com um amigo do mesmo apetite que formaríamos uma sociedade de ajuda mútua. Como os alcoólatras anônimos. Sempre que nos víssemos diante da tentação da comida, procuraríamos o apoio do companheiro para não quebrar o regime.
Alô?
Alô. Sou eu.
A esta hora da madrugada?
Estou há quatro horas sentado na frente de um quindim, resistindo à tentação, mas não tenho mais forças. Eu vou comer o quindim.
Não faça loucura.
Eu vou comer o quindim!
Espere! Não faça nada até eu chegar aí.
É dos molhadinhos. De um amarelo-gema profundo. Translúcido em cima e com a textura mais firme embaixo. E eu vou comê-lo.
Aguenta aí que eu já estou saindo de casa.
Vem depressa!
Haveria, periodicamente, reuniões da nossa sociedade para autocrítica e recriminações.
Confesso. Tive contato carnal esta semana. Com um filé na manteiga! Mas não toquei no purê de batata.
Eu acuso. Vi um companheiro saindo sorrateiramente de uma doçaria com um pacote na mão.
Você não pode ter me reconhecido. Eu estava de nariz e bigode postiços!
Ah! Eu não tinha certeza mas agora tenho. Era você mesmo. Vergonha!
E o que é que você estava fazendo perto da doçaria? Hein? Hein?
O meu cooper. E em jejum.
O tal amigo e eu desistimos da ideia quando, de repente, nos vimos planejando a festa de inauguração da sociedade e já tínhamos evoluído do buffet frio para os pratos quentes e nos preparávamos, entusiasticamente, para escolher as sobremesas. É, não daria certo.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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