Você
conhece a velha piada: É fácil deixar de fumar, eu mesmo já deixei
mais de 100 vezes. Ou a do cara que passa a usar uma piteira comprida
porque o médico lhe disse para afastar-se do cigarro. Mas não há
nada de engraçado com uma pessoa tentando livrar-se do vício. Outro
dia, por exemplo, prenderam o estrangulador.
— É
que eu deixei de fumar, delegado...
— E
daí? Isso é desculpa para estrangular 17 pessoas?
— Eu
não sabia o que fazer com as mãos...
Como
eu nunca fumei, não tenho muita paciência com o martírio dos
amigos que deixam de fumar. Antes eles eram intragáveis, por assim
dizer, com aquele ar de superioridade e falso autodesprezo que todo
viciado assume diante de nós, inocentes.
— Você
não fuma, é? Faz muito bem. Eu já estou perdido...
Mas
estava implícito na sua atitude que cada baforada era um gosto do
doce prazer da perdição que eu jamais sentiria e que, por não
fumar, eu era ingênuo, trouxa, contraído e provavelmente virgem.
Agora são insuportáveis na sua dependência. E eu sou intransigente
na minha superioridade.
— Me
dá uma bala.
— Não
tenho.
— Um
chiclé.
— Não
tenho.
— Me
dá esse lápis para mastigar.
— Não
dou.
— Deixa
eu roer as tuas unhas que as minhas já acabaram.
— Não
deixo.
Eles
são nervosos, os que deixaram de fumar. Engordam, emagrecem como os
outros respiram. Alguns mantêm um cigarro apagado sempre no canto da
boca ou entre os dedos e o usam para gesticular, cheirar e amassar
furiosamente no cinzeiro antes de tirar outro da carteira. E não
aceitam cigarro oferecido.
— Eu
tenho os meus, obrigado.
É
de cortar o coração, concordo. Mas eu não me comovo.
Afinal,
quem demorou tanto tempo para descobrir que botar fumaça para dentro
dos pulmões, deixá-la dar as suas voltas lá dentro e depois
expelir pode fazer mal à saúde não merece compaixão. Alguns
engordam demais com privação do cigarro e, aí sim, têm a minha
compreensão. Eu só sou solidário no peso. É fácil fazer regime,
eu mesmo começo um novo todas as segundas-feiras. Mas não adianta,
sou viciado. Em cigarro de chocolate, inclusive, embora não trague.
Uma vez combinei com um amigo do mesmo apetite que formaríamos uma
sociedade de ajuda mútua. Como os alcoólatras anônimos. Sempre que
nos víssemos diante da tentação da comida, procuraríamos o apoio
do companheiro para não quebrar o regime.
— Alô?
— Alô.
Sou eu.
— A
esta hora da madrugada?
— Estou
há quatro horas sentado na frente de um quindim, resistindo à
tentação, mas não tenho mais forças. Eu vou comer o quindim.
— Não
faça loucura.
— Eu
vou comer o quindim!
— Espere!
Não faça nada até eu chegar aí.
— É
dos molhadinhos. De um amarelo-gema profundo. Translúcido em cima e
com a textura mais firme embaixo. E eu vou comê-lo.
— Aguenta
aí que eu já estou saindo de casa.
— Vem
depressa!
Haveria,
periodicamente, reuniões da nossa sociedade para autocrítica e
recriminações.
— Confesso.
Tive contato carnal esta semana. Com um filé na manteiga! Mas não
toquei no purê de batata.
— Eu
acuso. Vi um companheiro saindo sorrateiramente de uma doçaria com
um pacote na mão.
— Você
não pode ter me reconhecido. Eu estava de nariz e bigode postiços!
— Ah!
Eu não tinha certeza mas agora tenho. Era você mesmo. Vergonha!
— E
o que é que você estava fazendo perto da doçaria? Hein? Hein?
— O
meu cooper. E em jejum.
O
tal amigo e eu desistimos da ideia quando, de repente, nos vimos
planejando a festa de inauguração da sociedade e já tínhamos
evoluído do buffet frio para os pratos quentes e nos
preparávamos, entusiasticamente, para escolher as sobremesas. É,
não daria certo.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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