Leio
Os últimos dias, de Liev Tolstói (Penguin / Companhia das
Letras), livro que resulta de um esforço conjunto de tradução de
Anastassia Bytsenko, Belkiss J. Rabello, Denise Regina de Sales,
Graziela Schneider e Natalia Quintero. Abraçado ao livro, pego no
sono. A organização é de Elena Vássina, a seleção, de Jay
Parini. Tantos nomes para dar conta deste “segundo Tolstói”, o
homem que se converteu a um espantoso cristianismo primitivo. Tantos
textos, fortes, mas o cansaço me vence e adormeço.
Pego
no sono enquanto leio “Três perguntas”, narrativa filosófica
que Tolstói escreveu em 1903. Dois anos antes, apesar da conversão
religiosa, é excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa por “escrever
obras repugnantes para Cristo e a Igreja”. Torna-se um profeta
incompreendido – embora, em todo o mundo, seja lido e respeitado.
Leva uma vida simples, abdica dos direitos autorais, torna-se
vegetariano e luta contra a propriedade privada. Entre a penúria e a
bravura, escreve “Três perguntas”, delicada parábola a respeito
da inutilidade das perguntas e a favor da potência dos atos.
O
ensaio tem cinco páginas, eu já estou nas últimas linhas. O sono
vem e sonho: um sonho distante de Tolstói e de sua Rússia. Eu sou
um pianista. No palco de um teatro, em um piano negro, interpreto um
“Concerto para piano”. Meus solos são comoventes, eu mesmo não
acredito que venham de minhas mãos. A música se infiltra em meu
sonho; mais que imagens, eu sonho sons. Até que, em uma escala mais
longa, noto, ao meu lado, um segundo pianista. Divide comigo o piano,
veste uma casaca solene, tem a cabeleira branca. Só agora me dou
conta de que é um concerto a quatro mãos. O pianista, meu parceiro,
me ignora.
Sua
presença, ao contrário, me fulmina. As teclas em que toco começam
a soltar, meu banco range, minhas mãos deslizam. Por algum tempo,
ainda mantenho o controle. Enquanto pensamentos atrozes me invadem,
meu parceiro, sereno e sóbrio, limita-se a tocar. Quando dou por
mim, dedilho sobre buracos, armo acordes sobre teclas inexistentes,
bordejo o abismo. Uma pergunta toma conta, então, de minha mente:
interpreto um “Concerto para piano” ou um “Piano para
conserto”? A pergunta – prova irrefutável de que o inconsciente
tem a estrutura de uma linguagem – me atordoa. Aos poucos, acordo.
Custo a entender que não estou em um teatro, mas em minha cama. Que
não sou um pianista, mas apenas eu mesmo. A pergunta ainda me
inferniza quando, já no banheiro, em busca de uma imagem mais firme,
me observo no espelho.
Só
quando volto para o quarto, me dou conta do livro de Tolstói aberto
a meu lado. Sento-me na cama e, ainda trêmulo, busco um elo entre
“Três perguntas” e meu pesadelo. Sim, foi um pesadelo: acordei
ofegante e a pergunta ainda me inferniza. De alguma maneira, cujo
sentido me escapa, o relato de Tolstói invadiu minha noite. Preciso
entender o que me aconteceu. Venho para o escritório e, bem devagar,
releio a parábola de Liev Tolstói.
É
a história de um tsar que promete uma grande recompensa a quem lhe
responder três perguntas. Como saber a hora certa de cada coisa?
Como saber quais são as pessoas mais necessárias? Como não se
enganar ao julgar, entre todas as coisas, qual a mais importante?
Ninguém lhe dá respostas convincentes. Em busca de respostas mais
verdadeiras, o soberano se veste de homem comum e, sozinho, viaja até
a morada de um eremita. “O eremita era magro e fraco – enfiava a
pá na terra e arrancava pequenos torrões, respirando a custo.”
Mal dá conta de si, como poderá saciar sua fome de respostas? Mesmo
assim, o soberano lhe faz as três perguntas. O homem ouve em
silêncio, depois retoma sua pá e volta a trabalhar na terra.
Comovido
com seu esforço, o tsar lhe toma a pá e começa, ele mesmo, a
cavar. Surge, logo depois, um desconhecido, que, com as mãos
trêmulas, segura o próprio ventre, coberto de sangue. Sem pensar no
que faz, movido só pela compaixão, o soberano lhe rasga a roupa e
cuida de seu ferimento. Depois lhe dá água fresca e o acomoda em
uma cama. No dia seguinte, já melhor, o homem o surpreende com um
pedido de perdão. “Não tenho por que o perdoar”, o tsar lhe
diz. O desconhecido revela, então, sua identidade: é um inimigo do
imperador, que executara seu irmão e lhe tirara todos os bens. Cheio
de ódio, jurara vingar-se. “Eu queria matá-lo, mas você salvou
minha vida.” Gestos silenciosos, e não palavras, salvaram os dois
homens.
Antes
de retornar a seu palácio, o tsar ainda tenta, pela última vez,
obter do eremita as respostas que busca. “Pela última vez, sábio
homem, lhe peço que responda.” O velho parece surpreso. “Mas
elas já foram respondidas”, diz. A hora certa foi aquela em que o
tsar tomou a pá do velho para ajudá-lo a cavar o chão. A hora
certa foi, também, o momento em que decidiu tratar da ferida do
desconhecido. “A hora mais importante é agora”, o eremita
resume. O homem mais importante é aquele com quem estamos no
momento. A coisa mais importante a fazer é a coisa que o momento nos
pede – e não pensar sobre isso. O eremita leva o tsar a ver que
ele já não precisa de respostas. Ele mesmo as formulara através de
seus atos.
Volto,
incomodado, a meu sonho. Por que o intrometo aqui? A literatura é
uma máquina de interpretar. Máquina sutil, que a cada página, a
cada palavra, se move de maneira diferente. Máquina imprevisível,
que nunca produz as mesmas respostas. Um “concerto para piano” ou
um “piano para o conserto”? Sigo a pista que Liev Tolstói me
deixou: há horas em que devemos nos entregar à beleza – a música
que toco em meu piano – e preferir o silêncio. Há muitas horas em
que as palavras não servem para nada. Mil palavras não valem um
pequeno ato.
A
literatura nos ajuda a ler a vida – ainda que se trate apenas de um
pesadelo. Na vigília, eu admito, ainda me espanto com o Tolstói
messiânico, que trocou a literatura pela fé. Prefiro o “primeiro
Tolstói”, que escreveu Anna Karenina e Guerra e paz.
Contudo, o “segundo Tolstói” existe – e agora tenho seus
escritos em minhas mãos. Preciso aprender alguma coisa com ele.
Alguma coisa precisamos sempre fazer do que lemos.
José
Castello, in Sábados inquietos
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