1
Aqui,
ainda dá pra ver o cigarro por acender em minha mão esquerda. Sou
aquele mais magrinho ali no fundo da poltrona verde-musgo, com cara
de hipopótamo abatido. Ao meu lado, o telefone nas mãos do mordomo
(naquele tempo, a gente chamava garçons de mordomos: moravam em
casa, nunca faziam cara feia e descendiam sempre de uma tradicional
família de mordomos).
Da
esquerda para a direita, inúmeros nomes ilustres.
Sentado
no meio, o fotógrafo dirige a cena, sem se dar conta que a máquina
estava fotografando sozinha.
Atrás,
na parede, o relógio marca meia-noite e quinze.
Na
foto, não saíram: o notável clitóris da Condessa Vronsky, as
marcas de varíola do Coronel Hermógenes, boa parte das terras do
Conglomerado União, representado no evento por seu vice-presidente,
e o sorriso da cabeça de javali sobre a lareira está um pouco
forçado, não passando, como se percebe, de uma reles contrafação
do sorriso usado por Gary Cooper naquele filme de Howard Hawks, como
é mesmo o nome, meu Deus, como a memória é solúvel em álcool!
E
Norma? Cadê Norma? Sua ausência grita nesta foto como o mais agudo
ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh que olhos humanos já ouviram.
A
foto também não registra o cheiro de queimado que senti, desde o
começo, mas, bem... Tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar.
2
TUDO
TINHA MUDADO. E uma angústia deste tamanho começou a tomar conta.
Um
desassossego, que botou no chão, diante de mim, o ovo de uma
pergunta: que é que esta festa está comemorando?
Quando
me disseram para vir, só disseram, uma festa. E eu vim sem saber o
que se celebra.
A
ideia de uma festa sem objeto, uma festa que não
comemora nada, me pareceu tão absurda quanto, sei lá,
quanto a súbita visão de uma coisa em si. Ora, conforme o professor
Propp, meu analista, as coisas em si só existem na imaginação.
Ora, ora, não era o caso desta festa, coisa que todo mundo vai poder
comprovar a seguir.
Casamento,
não era. Faltava no ar aquele clima venéreo, venusiano, dos
casamentos, onde todo mundo ficava olhando para os noivos, viajando
nas sacanagens que eles logo vão estar praticando, todo mundo vê
nas bochechas vermelhas da noiva o fogo da expectativa de dali a
pouco estar levando um apaixonado caralho na buceta, no nervosismo do
noivo, aquela pergunta clássica: por que é que esse bando de chatos
não dá o fora logo pra eu poder comer esta mulher em paz? Não, não
havia esse clima. Olhei para o alto, e girei o olhar. Não havia
cupidos voando em volta da mesa.
Busquei
outros sinais, sinais de qualquer um desses acontecimentos que vão
da vida até a morte, batizados, bar mitzvah, noivados, bodas de
prata, colação de grau, exéquias, velórios, guardamentos.
Nenhum
sinal. Perguntei ao vestido das mulheres, a seus penteados
renascentistas, e nada.
Não
é do meu feitio suportar muito tempo coisas que eu não entendo.
Esses lustres, esses candelabros, essa luz toda não me merecem.
Minha integridade exigia uma medida enérgica, minha honra tinha que
ser lavada em distância.
Levantei
da poltrona verde-musgo e dourado.
Deixei
para trás o gratuito cacarejar das damas presentes, e me encaminhei
para a porta.
Saí
da casa, e entrei no vento, caminhando em direção ao carro.
Tive
que manobrar muito para me desvencilhar de todas aquelas máquinas
caríssimas como seus donos e donas.
Lancei
um olhar, não sei se de desprezo ou de despeito, para aquele imenso
casarão iluminado no meio do mato, onde rolava uma festa que não me
queria.
Peguei
a estrada, e tomei a direção da cidade.
Quando
consegui estabilizar minhas emoções e atingi aquele estado meio
neutro, meio mecânico, que os carros exigem dos seus motoristas,
algo entre o sono e a extrema vigília, nesse momento, a tempestade
caiu. E veio com tudo.
Tive
que parar à margem da estrada, esperando passar. Passar a chuva.
Passar o tempo. Passar a maldita vontade de voltar.
Apanhei
um cigarro. Mas cadê o isqueiro? Tinha certeza de ter deixado aqui a
caixa de fósforos de papel daquele hotel.
Nada.
Eu estava sem fogo. E tive que me resignar.
Foi
principalmente esta falta de fogo que me fez lembrar Norma.
E
só então me dei conta que não conseguia lembrar das feições do
seu rosto, nem da cor dos cabelos. Nem saberia dizer se era jovem ou
madura.
Dos
outros convivas eu lembrava com nitidez, a memória, dizia o
professor Propp, é a minha grande virtude, e, por isso, a fonte de
todos os meus males.
Propp
sempre me diz:
— Esquece,
esquece mais. Esquecer faz bem.
Eu
prometo me lembrar disso. E ele diz:
— Está
vendo? Já está lembrando de novo.
Contra
o bloco nítido daqueles convivas todos, dos quais eu lembrava cada
detalhe, a figura de Norma se destacava como uma massa de amnésia.
Devia estar muito distraído quando fiquei vidrado nela.
Não
sabia quem era, mulher de quem, comida de quem, quem pagava seus
luxos, a que casas, a que fortunas estava ligado seu destino.
Que
será que fazia? Exercia a caridade? Atacava os viandantes à noite?
Desenhava modas? Tocava a 7 a Sonata de Chopin no piano? Cavalgava
aos domingos? Assistia filmes proibidos em seções privadas? Batia
no marido? Açoitava os criados? Colecionava amantes? Frequentava
igrejas, capelas, terreiros?
Todas
essas perguntas empalideciam diante de uma: volto ou não volto? Dei
meia-volta, e voltei para casa.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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