segunda-feira, 1 de abril de 2019

O homem que telefonou para ele mesmo

Discou o próprio número. Uma, duas vezes. “Será que não estou?” Ansioso. Duas ligações erradas. Nervoso. Ali, no escritório, era difícil conseguir linha. Mais difícil, mantê-la. Errava, colocava o fone no gancho, levantava, tinha ligação para alguém. Mas ele dizia que não era dali, do banco, era da loja de eletrodomésticos, a pessoa desligava, ele apanhava a linha, discava seu próprio número. Ocupado. Quatro, cinco vezes ocupado. “O que estarei fazendo?” “E eu sabia que não estava fazendo nada, apenas tentando telefonar para mim mesmo. Consegui.”
Alô, quem fala?
Você mesmo.
Eu estou?
Não.
Saí?
Não.
Então?
Morreu.
Devia ser brincadeira de mau gosto. Não era ele mesmo atendendo ao seu próprio telefonema. Alguém em seu lugar, dando trote. Ele jamais faria uma brincadeira dessas com os outros, imagine consigo mesmo. Desligou. Ficou à espera. Devo ter ligado errado e o sujeito quis me gozar. Enquanto esperava, olhou pela janela, homens faziam buracos enormes, enterravam tudo que passava: ônibus, caminhões, bicicletas, motos, basculantes. Devia ser algum comando antiauto. Não sabia da existência de nenhum, mas numa cidade como esta, diariamente surgem coisas novas, coisas velhas desaparecem, sejam prédios, autos ou pessoas. O telefone tocou.
Você ligou para cá?
Liguei. Disseram que eu não estava.
Você não está mesmo.
Como estou atendendo?
Eu é que estou curioso de saber como você está ligando.
É fácil! Basta discar meu próprio número.
Não, não é fácil assim. Já tentei muito ligar para você. Nunca consegui.
Agora conseguiu.
Não sei como. Desculpe! Está um barulho infernal aqui embaixo do meu prédio, não consigo ouvir direito o que você diz.
O que está acontecendo aí?
Estão enterrando os prédios, as casas, tudo. Um comando anti-habitacional, me parece.
Por quê? Não temos mais o direito de morar?
Acredito que não. Mas não posso garantir nada, que estou muito confuso.
Estamos todos confusos nesta cidade. Agora há pouco ouvi eu mesmo dizer que morri.
Eu é quem disse.
Você?
Sim, mas você sabe que eu sou você?
Sei, fui eu que te chamei. Precisava falar comigo mesmo.
Você tem pensado muito consigo mesmo. Comigo.
Não morri, não é mesmo?
Vou te contar uma coisa.
O quê?
Não diz pra ninguém?
E se eu disser? E daí? Diz.
Não vai se assustar? Promete ficar calmo?
Prometido.
Sabe, não foi você quem morreu.
Quem foi então?
Fui eu.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

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