Um
amigo que está sofrendo a tristeza de ir ficando velho me escreveu e
fez esta pergunta: “O que fazer para permanecer jovem? O que fazer
para, na velhice, continuar a ter o desejo de viver?”. Acho que
essa é pergunta mais dolorosa que fazem aqueles que se veem
envelhecer. É o tema do filme Morte em Veneza, baseado no
livro de Thomas Mann: um homem maduro, na fronteira da velhice –
seus bigodes já estão grisalhos e as rugas marcam o seu rosto –,
num hotel de Veneza, vê um jovem adolescente que brinca na praia.
Aquela imagem de juventude se apodera dele com uma força
insuportável. A imagem do jovem o atormenta e ele dele se enamora.
Não tem nada a ver com homossexualidade. Não é isso que está em
jogo. Na imagem do jovem ele vê a sua própria juventude perdida. O
espelho é um sofrimento. Especialmente quando o espelho são os
olhos de uma jovem que se levanta e, com um sorriso, nos oferece o
seu lugar no metrô... Continuar a ser jovem sendo velho? Eu acho
isso é possível. O apóstolo Paulo, sentindo a mesma coisa, disse:
“Embora o nosso homem exterior se corrompa, o nosso homem interior
se renova dia a dia”. Claro, há coisas que são perdidas,
definitivamente. A pele, por exemplo: as rugas, a flacidez, a secura.
Mas, com a perda, há ganhos. Na juventude, a pele é a face exterior
da musculatura. Ela nada revela, a não ser os músculos. Na velhice,
a pele deixa de ser a superfície exterior dos músculos e passa a
ser a superfície exterior da alma. Os músculos podem ser obstáculos
à manifestação da alma. Na velhice, a pele é o meio através do
qual a alma se torna visível. Especialmente o rosto. Livre das
intermediações da musculatura, a alma pode então realizar sua
função artística de esculpir o rosto. Ela aparece no rosto.
Acontece, então, a ocasião para que se realize o prometido pelo
evangelista João: “... e o Poema se faz carne”. Tudo, então,
vai depender dos poemas que estão guardados na alma. Pois a alma é
apenas isso: o lugar onde os poemas estão guardados. E o rosto vai
então revelar uma beleza que a juventude não deixava ver. Ou, quem
sabe, o inverso, uma feiura que a juventude não deixava ver. Velhice
é o tempo da verdade da alma. Os velhos terão rosto de criança se
a criança eterna continuar viva dentro deles. E a criança, como
disse Zaratustra, é “inocência e esquecimento, um novo início,
uma brincadeira, um moto-contínuo, um primeiro movimento, um
‘Sim’ sagrado...” . As crianças jamais desejam ser aposentadas
de ser crianças. O terrível e mortal é quando o homem se aposenta.
Não estou me referindo simplesmente ao momento em que não é mais
necessário comparecer ao trabalho. Estou me referindo àquele
momento quando um homem ou uma mulher atracam o seu barco e se
entregam à tola ilusão de, finalmente, ter paz. Mas paz,
precisamente, é o que a alma não deseja. A alma deseja o perigo, o
desconhecido. A alma é uma águia que ama as alturas, as montanhas
geladas, o mar desconhecido, os abismos. A alma é guerreira: “Pugno,
ergo sum” – luto, logo existo. É preciso que haja sempre uma
batalha a ser travada. A paz desejada (o sonho do “Sítio do Vovô”)
logo se transforma num charco de água parada. A segurança é a mãe
do tédio. E no tédio as serpentes chocam seus ovos. “Homens
velhos devem ser exploradores, não importa onde... Temos de estar
sempre nos movendo na direção de uma nova intensidade, de uma união
mais alta, de uma comunhão mais profunda... Nos movendo através de
uma desolação escura, fria e vazia: o grito das ondas, o grito do
vento, as águas imensas das gaivotas e dos golfinhos: no meu fim
está o meu início” (T. S. Eliot). Nikos Kazantzakis é um autor
que precisa ser lido. Dentre todos os seus livros, todos eles
maravilhosos, o que fala mais perto do meu coração é Zorba, o
Grego ... Quem viu só o filme nada viu. Tentei ver o filme,
pensando que seria igual ao livro, e não consegui chegar ao fim.
Acontece que há certas sutilezas na escrita que não podem ser
transformadas em imagens. Está relatado que Zorba, velho e doente,
ao ver que a morte já estava dentro do seu quarto, levantou-se da
cama, foi até a janela, e por longos minutos contemplou com sorriso
e silêncio os cenários que se abriam à sua frente, o mundo
maravilhoso, ao fundo as montanhas. De repente, pôs-se a relinchar
como um cavalo, agarrou-se à janela e disse: “Um homem como eu
deveria viver mil anos!”. Ditas essas palavras ele caiu morto...
Zorba morreu criança.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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