quarta-feira, 27 de março de 2019

Os sóis da noite

O mineiro é um pássaro de plumas negras que os mineiros perseguem e não veem nunca. Voa muito alto e vai alvoroçando com seu grito duro o topo das montanhas. Sabe-se que descansa nos últimos galhos dos cedros das farrobas. Há outros pássaros, o capanero e a piscua, que também anunciam o esconderijo dos diamantes. Quando a piscua está muito alegre e canta piiiiscua, piiiiiiscua, é por alguma coisa boa, mas cuidado com esse passarinho manso, de plumas cinzentas, quando fica triste e canta baixo, como se estivesse com raiva: melhor é ir embora. Em compensação, cada vez que o mineirinho arisco grita seu único grito, está mostrando o diamante que foge, para que os homens se lancem sobre a pedra e a levantem no punho. O mineiro conduz os mineiros até o fundo da selva de Guaniamo, onde vive. Quando sai na savana, mal começa a voar, morre, porque o ar da planura bate em seu peito.
O diamante é uma pedra que magicamente aparece no meio das peneiras, desprendida de uma massa de pedras inúteis e barro, depois de esconder-se nos leitos de areia dos rios ou nas profundidades da terra, entre os sinais delatores: coisas que parecem grafite de lápis, lentilhas, merda de papagaio, pedaços de metal e sementes de romã. Para encontrar o diamante, este senhor, é preciso ter sangue nas veias.
O mineiro é um preto velho que protesta porque são três da manhã e na rua da Salvação já não se pode beber. O que é meu é meu, grita. Eu tenho reales, não preciso pedir dinheiro a esses botequineiros. Somos gente boa, mas quando dá raiva, dá raiva. Tenho um diamante grande como o da África aqui no meu bolso, e não me atendem. Que cantem as máquinas! Que saiam as mulheres! Estão pensando que Marchán é algum vira-latas, nesse negócio? Não me deem nada. Eu tenho mais reales, mais que esses que têm negócios e picas, eu tenho reales no bolso e no banco de Caracas e em todos os lugares. Aqui estou com meu burrico e quero que as mulheres tirem a roupa e deem banho no meu burrico com brandy, porque é assim que ele gosta! Don Marchán é o homem mais rico de todas as minas desse país, que caralho, e eu me chamo Dionísio Marchán. Quem quiser dormir nesse país que faça casa. Aqui tem muita madeira. Você vai me fazer calar? Eu não tenho medo de você nem de ninguém. Eu é que faço você calar. Faço você calar a boca a machadada. Eu nunca, em nenhuma mina, pedi esmola a ninguém. E quem tiver raiva de mim eu me mato com ele, eu ou ele, a machado ou a bala ou do jeito que for. E o homem que me venha, que me venha frente a frente, assim, porque mamãe não me pariu escravo. Eu sou um homem sem amo! Um homem sem medo! O tigre mais bravo que sair, já o amamentei. Eu sou Marchán. Eu aprendi para saber. Que ninguém banque o inimigo comigo. Uns quiseram, mas não puderam. Que saiam as mulheres, todas as mulheres! Peladas, que Marchán paga esta noite a festa da mina! Que saiam a Mena e a Turca e a Rosa! Aqui a máquina tem de cantar! Seja doutor, capitão, seja o que for, ninguém na Salvação vai fechar a porta para mim. Porque eu sou Marchán. Já estou passando dos setenta, mas sou como burro bom, o brio eu não perdi, já conheço a vida! Eu sou um homem que mata de frente! Hoje já não sobram homens, isso sim. Hoje o que existe são punheteiros. Que cantem as máquinas, eu falei! Vamos arrebentar o pescoço das garrafas! As mulheres, que dancem! Hoje sou o que ontem não fui e o que posso ser não sou, pois esse dia de hoje é o que digo de mim. Que Dionísio Marchán morreu de velho. Esse não foi morto, esse não!
O diamante é uma planta que nasce em qualquer parte, porque para existir não exige boa terra. Mas tem seus mistérios. Se faz perseguir pelos túneis a golpes de lança e apaga quando quer a vela ou os pulmões dos mineiros.
O diamante está no topo de um morro invencível, onde muitos quiseram subir e rodaram encosta abaixo pelas pedreiras. O morro, que se ergue nas costas do Caura, mostra, apesar disso, cicatrizes de escaladas que se perdem de vista muito lá em cima, e do alto se desprende, pelas manhãs, uma cascata de laranjas muito doces (nestas terras onde só crescem a seringueira e a sarrapia).
O diamante jaz no fundo do leito arenoso do rio Paragua, no sítio exato e secreto onde uma mulher encontrou, quando as águas baixaram, um canhão de bronze com o suporte quebrado, um tremendo canhão daqueles que os conquistadores carregavam pela boca e punham fogo na mecha. O canhão estava ali, embora fosse impossível estar ali, porque as cataratas do rio teriam sucumbido os galeões ou as corvetas e ninguém poderia ter aberto uma picada, de tão longe, através da selva cerrada.
Don Sifonte! Mandam-lhe lembranças.
Como andam as coisas?
Até o momento, não andam.
Como vai você?
Mais velho que ontem, mais perto da morte.
Pasteizinhos quentes! Para velhos que não têm dentes! Os caraquenhos são uns frescos.
As luzes que nascem do diamante cortam como faca. Os comerciantes os examinam com lentes grossas. Às vezes o diamante não é um diamante: é um quase quase.
O mineiro é um barulho que nasce pelas noites, quando todos dormem, e levanta levemente e flutua sobre o sonho de todos.
O mineiro é o murmúrio das surucas nas mãos dos fantasmas; a surda agitação dos pedregulhos lavando-se e filtrando-se por três peneiras sucessivas; o som quase secreto da areia que, de filtro em filtro, vai caindo.
O mineiro é o ruído de ferro das pás e das lanças que solitárias se erguem, dançam, se esfregam entre si e se põem em movimento até os poços, e vão penetrando a terra e cavam os socavãos enquanto todos dormem.
E é o eleito que escuta, com o rosto crispado e todos os músculos em tensão, até que finalmente o ruído cessa e fogem os fantasmas para que não os surpreenda e os mate a luz do dia. E então, desesperadamente, o escolhido se afunda no grotão onde o diamante o espera.
O diamante é uma presa que se esconde debaixo da língua de um homem muito magro, que treme de medo. Outros homens tiraram sua roupa, arrancaram sua roupa em farrapos. “Você roubou-nos cinco baldes”, dizem. “Vimos quando você os roubou.” Falam com os dentes apertados. “Todo mundo viu”, dizem.
O homem muito magro nega agitando a cabeça e murmura algumas palavras sem que ninguém perceba que tem o diamante debaixo da língua.
Nadando, nessa água imunda? Nem você acredita em você. Estava roubando. Isso é o que você estava fazendo. Roubando. E isso não se faz. Isso é pecado. É feio, muito feio, fazer isso.
O homem magro está rodeado por eles, um anel de homens com olhares acesos. Um deles atira cuidadosamente o nó escorregadio de uma corda longa que tem numa das mãos para o galho alto de uma árvore, e o homem muito magro engole o diamante e se condena.
O mineiro é um homem com um arco e uma flecha tatuados no peito.
O mineiro fala, movimento de arco em tensão: Barrabás abriu uma época. Lá pelos anos quarenta, diz, Barrabás encontrou no Polaco um diamante do tamanho de um ovo de pomba, que valia meio milhão de dólares. Essa manhã, diz, os comerciantes lhe haviam negado café com pão.
Voo alto da flecha em direção ao alvo: o diamante era perfeito, transparente e com reflexos azulados, embora tivesse as beiradas irregulares. Nunca visto.
Alegria da flecha no ar: Barrabás oferecia banquetes ao presidente e dava grandes festas em Caracas. Passeava pelas ruas e gostava das moças nas varandas: comprava delas um olhar e um copo d’água por cem bolívares. Mandou arrancar todos dos dentes e fazer uma dentadura de ouro puro. Apaixonou-se pela filha do presidente.
A flecha bate: o mineiro diz que Barrabás ofereceu dez mil bolívares para entrar nos salões do Tamanaco, e que não deixaram, por ser preto. Mas o Tamanaco não existia.
A flecha quebrada: Barrabás definha, pobre e velho, numa mina perdida da fronteira.
Aniquilação da flecha: quando voltou de Caracas, não conseguia nem um quilo de arroz fiado. E já não pode contar nem consigo.
O diamante é um espelho profundo onde os mortos de fome acreditam encontrar seus verdadeiros rostos.
O diamante é um recém-nascido que se oferece às putas colombianas da zona vermelha ou se evapora em rum ou uísque escocês ou cai na emboscada dos baralhos marcados nas vendinhas dos trapaceiros profissionais.
O diamante faz dançar os milhões à luz da lua, e, quando sai o sol, no bolso não sobra nem um trocado para comprar a bala que faria falta.
O diamante espera, adormecido, entre as raízes de uma gameleira que arde, ao pé das galhadas em chamas, no centro do delírio de um homem que desesperadamente sabe que não lembrará.
O mineiro é um corpo quente e gelado que treme numa rede, à intempérie, com os olhos queimados pela febre. O mineiro acha que chove. Mas a chuva é uma folha de palmeira que um homem arrasta por um caminho poeirento, recém-aberto a machado e já rachado pelo sol, e a folha avança e soa como uma chuva que roda. Se a chuva caísse, a verdadeira chuva, talvez aliviasse os fervores da febre do mineiro que queria sair da rede e da febre, mas está preso, as pernas não respondem, o queixo treme, os dentes se enlouqueceram e chocam-se entre si, esse diamante é meu, uma mão na garganta o afoga e resseca sua boca, esse diamante tão grande como um penhasco, necessita vomitar o que não comeu nem bebeu, lambido pelo fogo, eu, eu que me banhei a sexta-feira santa e não fui transformado em peixe, aonde me vão levar, os poros se dilatam, estouram, aonde a transpiração salta a jorros, se aqui não temos nem cemitério, o diamante reina no incêndio das raízes espantosas das gameleiras e no incêndio da febre na cabeça do mineiro, a cabeça se parte, eu que dormi com mulher numa sexta-feira santa e não fiquei grudado, aonde vão me levar, um alicate quente que tritura o crânio e suprime a respiração, querem me despojar, querem me roubar, a transpiração aos jorros, abusadores, filhos da mãe, a pedra nascida para mim aí embaixo da árvore que arde, a morte, quando os que não voaram voam, aonde, quando os que não correram correm, as flores grudadas, os pássaros mudos, e bruscamente surge então a invasão de borboletas negras, grandes como urubus, apagam o céu e cortam os caminhos e o mineiro sente que está indo, abre caminho entre as borboletas a machadadas, invencível e veloz, a sopros de vento puro abre caminho, deixa-se ir rumo à pedra que o chama, fulgurante, da fogueira de árvores à beira do rio e do fim de todas as coisas.
O diamante é uma pedra maldita. O diamante é uma pedra só. Com suas línguas de diamante, as antigas bruxas poderosas cortam o osso e o aço e atravessam a carne dos planetas.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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