sábado, 30 de março de 2019

Literatura e ciência

Acreditamos que os homens mentem, mas a realidade não mente. As coisas, pensamos, são sempre verdadeiras. Mas por que confiar tanto no mundo real? Para desmascarar sua instabilidade, temos a ficção. A literatura não é uma fantasia ingênua, um divertimento sem consequências. Ao contrário: ela é uma máquina de interrogar as coisas. Com suas bordas frouxas, seu olhar “de banda” e sua inconstância, só a literatura pode desmascarar as ilusões da Verdade.
Ideias assim, que reviram o mundo de ponta-cabeça, agitam a alma do escritor português Gonçalo M. Tavares. Em uma bela caixa azul, nomeada Breves notas (editora UFSC / Editora da Casa), me chegam três de seus preciosos livros. O primeiro, Breves notas sobre ciência, é o que me interessa aqui. Mas os outros dois – Breves notas sobre o medo e Breves notas sobre as ligações – são igualmente imperdíveis.
Escolho as notas sobre a ciência porque, no século do poder tecnológico, ela costuma nos oprimir. Todos nos sentimos paralisados diante de um diagnóstico médico ou de uma perícia científica. Ditadas em nome da ciência, essas verdades podem até produzir alívio ou gerar belas demonstrações, quando nada mais fazem que repetir e levar ao mesmo lugar.
Ser exato é encaixar a exatidão nas coisas”, alerta Gonçalo. A exatidão é uma caixa que lacra a Verdade. Os obedientes e os crentes pensam que o mundo é perfeito, a imperfeição está em nós. Armado com sua artilharia de métodos, o cientista – nos alerta Gonçalo – cria dificuldades e conceitos para chegar ao que já conhece. Nada repugna mais aos sistemas detectores da Verdade do que a presença da Mentira. Só a Verdade, nada mais que a Verdade, pregam os cientistas, e o mundo que se dane.
Não é por outro motivo, diz Gonçalo, que a ciência está sempre atrasada em relação ao Desejo. “É como se os cavalos fossem o Desejo e a carroça puxada por eles a ciência”, compara. Se os cavalos se separam da carroça, ganham velocidade, mas se tornam inúteis. Mas o pior sucede à carroça: “Se os cavalos se separam dela, ela não mais se moverá”. Interessado em manter o controle da carruagem, o cientista exerce uma coação feroz sobre as coisas. A ciência “embeleza” a vida, isto é, lhe empresta coerência e limpidez. “Queres trazer-te o novo?”, Gonçalo pergunta. Ele mesmo responde: “Sai de ti”. O novo está sempre deslocado em relação a nosso olhar. Está sempre fora de nós.
Chegar sempre aos mesmos resultados – acreditar que a Verdade está nas provas que se repetem, como faz a ciência, não é pensar, é imitar. A rigor, os instrumentos científicos não fornecem respostas ao desconhecido. O que fazem? Enquadram o desconhecido no conhecido e, assim, acreditam dominá-lo. O investigador vê o que seus olhos querem ver. “Isto é: vês os teus olhos.” Quando a ciência não passa de uma luta com os objetos do mundo. Não se trata, portanto, de Verdade ou de Mentira, mas de forças ou de fraquezas, Gonçalo aponta. “O evidente é aquilo que é mais forte que nós.”
A prova é uma questão de poder (de força), e não de Verdade. Se fosse sábio, o investigador observaria as coisas de banda, e não de frente. “Observar a realidade pelo canto do olho, isto é: pensar ligeiramente de lado.” Isso é a criatividade, Gonçalo sugere. Seu livro é uma reunião de notas rápidas, trepidantes, que nos atravessam como choques. Por isso ele é um escritor genial: não escreve para tranquilizar, mas para acordar. Por isso faz literatura mesmo quando parece fazer filosofia: não abdica do singular. Mantém-se, firme, na esfera do “1” – título, aliás, de um de seus livros de poemas (Bertrand Brasil, 2005). Se o leitor é alguém que dorme, a literatura não é um cobertor (a ciência), mas um despertador (a arte).
Breves notas sobre ciência é um incomum, mas ardente, exercício de topografia. Como um topógrafo sutil, Gonçalo acomoda as coisas lado a lado, enfileira os conceitos e os pensamentos, e os confronta. A ciência parte do princípio de que as coisas são estáveis e “verdadeiras”. Contudo, alerta Gonçalo, as coisas não são verdadeiras, as coisas mentem! “Um átomo não poderá mentir? Uma substância química não poderá mentir? Uma pedra?”, se pergunta. Toda a ciência parte do pressuposto de que a realidade não mente; chegar à Verdade seria trazer à luz a realidade imóvel. Alerta Gonçalo: esse é um pressuposto não comprovado. Aí está a literatura, que, com seus rasgões e suas guinadas, desmascara esse real de gelo.
Afirmar a topografia é, pois, afirmar a inconstância da visão. “Há algo de místico na convicção de que a palavra descreve melhor a verdade do mundo”, diz Gonçalo. Porque repudia o singular e aprecia a repetição, a ciência prefere as palavras que, como ovos, se acomodam com serenidade em uma caixa. A ciência foge do desenho, que achata e quebra os ovos, expondo o que não se pode nomear. A ciência só se aproxima do ilógico para projetar leis que o acorrentem. Só a literatura persiste no ilógico e faz uma aposta corajosa no Um.
A ciência considera o singular (o Um) só um pormenor, mas o singular é a prova da inconstância (da mentira) das coisas. Muitos cientistas trabalham armados de mapas (modelos); mas se esquecem de confirmar se representam, de fato, o lugar em que estão perdidos. “A ciência parte sempre do princípio de que tem o mapa certo.” Tudo não passaria de uma questão de empenho. Por isso ela não suporta a metáfora, instrumento da linguagem ilógica que, em vez de acomodar, empurra. A ciência prefere os instrumentos sólidos, como o martelo, que bate sempre as mesmas coisas.
Contra a figura asséptica do cientista, surge o escritor, sem método e sem princípios, apostando tudo em seu olhar torto. A Verdade, nos diz Gonçalo, é sempre o resultado de um método; o resto é Mentira. Ocorre que, se mudamos o método, a Verdade também muda. O que leva à conclusão inquietante de que, no absoluto, nada é verdadeiro. Só a poesia suporta essa verdade feita de estilhaços. Resume Gonçalo: “Funcionar é repetir um raciocínio. Eis o martelo. Investigar é não repetir um raciocínio. Eis o difícil”.
José Castello, in Sábados inquietos

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