terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

De volta para o Caitité

Quando ele encostou a enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda não possuía ideia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada adiantavam, para retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai preto Serapião.
Adeus, minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes!
Espera o fim das chuvas, meu filho! Espera a vazante...
Não posso, mãe Quitéria. Quando coração está mandando, todo tempo é tempo!... E, se eu não voltar mais, tudo o que era de meu fica sendo para vocês.
Rodolpho Merêncio quis emprestar-lhe um jegue.
Que nada! Lhe agradeço o bom desejo, mas não preciso de montada, porque eu vou é mesmo a pé...
Mas, depois, aceitou, porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus.
E todos sentiram muito a sua partida. Mas ele estava madurinho de não ficar mais, e, quando chegou no sozinho, espiou só para a frente, e logo entoou uma das letras que ouvira aos guerreiros de seu Joãozinho Bem-Bem:

A roupa lá de casa
não se lava com sabão:
lava com ponta de sabre
e com bala de canhão...”

Cantar, só, não fazia mal, não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos caminhos do sertão.
Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de um solene pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.
E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.
Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de teto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros lhe davam comida, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu.
Uma tarde, cruzou, em pleno chapadão, com um bode amarelo e preto, preso por uma corda e puxando, na ponta da corda, um cego, esguio e meio maluco. Parou, e o cego foi de clamando lenta e mole melopeia:

Eu já vi um gato ler
e um grilo sentar escola,
nas asas de uma ema
jogar-se o jogo da bola,
dar louvores ao macaco.”

Eh, zoeira! ‘Tou também!.., — aplaudiu Nhô Augusto. Já o cego estendia a mão, com a sacola:
— “Estou misturando aqui o dinheirinho de todos”...
Mas mudou de projeto, enquanto Nhô Augusto caçava qual quer cobre na algibeira: — Tem algum de-comer, aí, irmão? Dinheiro quero menos, que por aqui por estes trechos a gente custa muito a encontrar qualquer povoado, e até as cafuas mesmo são vasqueiras...
E explicou: tinha um menino-guia, mas esse-um havia mais de um mês que escapulira; e teria roubado também o bode, se o bode não tivesse berrado e ele não investisse de porrete.
Agora, era aquele bicho de duas cores quem escolhia o caminho... Sabia, sim, sabia tudo!
Ótimo para guiar... Companheiro de lei, que nem gente, que nem pessoa de sua família…
Se despediu. Achava a vida muito boa, e ia para a Bahia, de volta para o Caitité, porque quando era menino tinha nascido lá.
Pois eu estou indo para a banda de onde você veio... Em todo o caso, meu compadre cego por destino de Deus, em todo o caso, dá lembrança minha a todos do povo da sua terra, toda essa gente certa, que eu não tenho ocasião de conhecer!
E aí o jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o cerrado ouvir: — “Qualquer paixão me adiverte...“ Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com Deus!...
E quando o jegue empacava — porque, como todo jumento, ele era terrível de queixo-duro, e tanto tinha de orelhas quanto de preconceitos, — Nhô Augusto ficava em cima, mui concorde, rezando o terço, até que o jerico se decidisse a caminhar outra vez. E também, nas encruzilhadas, deixava que o bendito as no escolhesse o caminho, bulindo com as conchas dos ouvidos e ornejando. E bastava batesse no campo o pio de uma perdiz magoada, ou viesse do mato a lália lamúria dos tucanos, para o jumento mudar de rota, pendendo à esquerda ou se em pescoçando para a direita; e, por via de um gavião casaco-de- couro cruzar-lhe à frente, já ele estacava, em concentrado prazo de irresolução.
Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos, mais casas, povoados, fazendas; depois, arraiais, brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com Deus!…
Guimarães Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga

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