Quando
ele encostou a enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda
não possuía ideia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada
adiantavam, para retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria
e de pai preto Serapião.
— Adeus,
minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai
chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes!
— Espera
o fim das chuvas, meu filho! Espera a vazante...
— Não
posso, mãe Quitéria. Quando coração está mandando, todo tempo é
tempo!... E, se eu não voltar mais, tudo o que era de meu fica sendo
para vocês.
Rodolpho
Merêncio quis emprestar-lhe um jegue.
— Que
nada! Lhe agradeço o bom desejo, mas não preciso de montada, porque
eu vou é mesmo a pé...
Mas,
depois, aceitou, porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um
animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida
de Jesus.
E
todos sentiram muito a sua partida. Mas ele estava madurinho de não
ficar mais, e, quando chegou no sozinho, espiou só para a frente, e
logo entoou uma das letras que ouvira aos guerreiros de seu Joãozinho
Bem-Bem:
“A
roupa lá de casa
não
se lava com sabão:
lava
com ponta de sabre
e
com bala de canhão...”
Cantar,
só, não fazia mal, não era pecado. As estradas cantavam. E ele
achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são
todas as coisas, nos caminhos do sertão.
Parou,
para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar
um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para
tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um
pau-d’arco florido e de um solene pau-d’óleo, que ambos
conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez,
teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a
contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel
de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com
a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão
sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos,
cantando cantigas do alto sertão.
E
também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático,
que claudicava estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E
bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas
dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira
vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três
coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo
alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu
voar, do mulungu, vermelho, um tié ainda mais vermelho — e o
tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô
Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora
um ramo que era de mulungu.
Viajou
nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de
teto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde
os barranqueiros lhe davam comida, de pirão com pimenta e peixe.
Depois, seguiu.
Uma
tarde, cruzou, em pleno chapadão, com um bode amarelo e preto, preso
por uma corda e puxando, na ponta da corda, um cego, esguio e meio
maluco. Parou, e o cego foi de clamando lenta e mole melopeia:
“Eu
já vi um gato ler
e
um grilo sentar escola,
nas
asas de uma ema
jogar-se
o jogo da bola,
dar
louvores ao macaco.”
— Eh,
zoeira! ‘Tou também!.., — aplaudiu Nhô Augusto. Já o cego
estendia a mão, com a sacola:
— “Estou
misturando aqui o dinheirinho de todos”...
Mas
mudou de projeto, enquanto Nhô Augusto caçava qual quer cobre na
algibeira: — Tem algum de-comer, aí, irmão? Dinheiro quero menos,
que por aqui por estes trechos a gente custa muito a encontrar
qualquer povoado, e até as cafuas mesmo são vasqueiras...
E
explicou: tinha um menino-guia, mas esse-um havia mais de um mês que
escapulira; e teria roubado também o bode, se o bode não tivesse
berrado e ele não investisse de porrete.
Agora,
era aquele bicho de duas cores quem escolhia o caminho... Sabia, sim,
sabia tudo!
Ótimo
para guiar... Companheiro de lei, que nem gente, que nem pessoa de
sua família…
Se
despediu. Achava a vida muito boa, e ia para a Bahia, de volta para o
Caitité, porque quando era menino tinha nascido lá.
— Pois
eu estou indo para a banda de onde você veio... Em todo o caso, meu
compadre cego por destino de Deus, em todo o caso, dá lembrança
minha a todos do povo da sua terra, toda essa gente certa, que eu não
tenho ocasião de conhecer!
E
aí o jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o cerrado
ouvir: — “Qualquer paixão me adiverte...“ Oh coisa boa a gente
andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com Deus!...
E
quando o jegue empacava — porque, como todo jumento, ele era
terrível de queixo-duro, e tanto tinha de orelhas quanto de
preconceitos, — Nhô Augusto ficava em cima, mui concorde, rezando
o terço, até que o jerico se decidisse a caminhar outra vez. E
também, nas encruzilhadas, deixava que o bendito as no escolhesse o
caminho, bulindo com as conchas dos ouvidos e ornejando. E bastava
batesse no campo o pio de uma perdiz magoada, ou viesse do mato a
lália lamúria dos tucanos, para o jumento mudar de rota, pendendo à
esquerda ou se em pescoçando para a direita; e, por via de um gavião
casaco-de- couro cruzar-lhe à frente, já ele estacava, em
concentrado prazo de irresolução.
Mas,
somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o
sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o
aparecimento de pessoas — mais ranchos, mais casas, povoados,
fazendas; depois, arraiais, brotando do chão. E então, de repente,
estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
— Não
me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos
indo é com Deus!…
Guimarães
Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga
Nenhum comentário:
Postar um comentário