sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

A mulher que contava portas

Ela ia para o trabalho a pé, contando tudo. No primeiro dia, quando descobriu o prazer da contagem, marcou em seu caderninho 113 portas entre bares, residências, lojas, garagens, oficinas mecânicas, escritórios de paisagistas, assessorias para o mundo da moda, lanchonetes. Percebeu que, às vezes, entre uma casa e outra existia um corredor estreito que levava a uma vila nos fundos. Portanto, havia mais portas a contar, o número estava incompleto.
No dia seguinte, entrou nos portões, foi aos fundos, completou as estatísticas, com exceção de dois lugares que estavam trancados. Bateu, tocou a campainha. Sem resposta. Deve ser gente que trabalha fora, devo voltar à noite. Ainda assim não conseguiu entrar. Pelo interfone, vinham perguntas ásperas:
O que quer?
Sabe… é difícil explicar… preciso conversar cara a cara… sabe… estou contando as portas.
Contando portas? Qual é a tua?
Preciso saber quantas portas existem na vila!
Não tem mais o que fazer?
Por favor! Por favor! Nem precisa vir aqui. Me diga quantas casas tem a vila, quantas portas dão para fora.
Vou chamar a polícia!
Por que polícia?
Fica sondando para ver se pode roubar. Roubo anunciado! Essa não! Está impossível viver na cidade.
Desligaram. Graziela voltou para casa, abriu seu caderno. Nele havia de tudo. Ideias, trechos de cartas para o namorado, pétalas de flores. Como descobrir? A menos que pedisse em alguma casa da frente que alguém a deixasse entrar. Olhando pelos fundos, contaria as portas. Nova tentativa. Inútil.
Quer entrar em casa para quê?
Para contar as portas da vila.
Contar portas? O que você é? Uma fiscal? Policial? Algum departamento desconhecido do governo? Alguma coisa relacionada com impostos novos? Tem autorização, identificação, uma carta que explique os motivos?
Uma carta?
Uma carta, sim! Da polícia, por exemplo. De um juiz, de alguém que responda pela sua idoneidade.
(Idoneidade? Que palavra?)
Com uma carta poderei entrar?
Não prometo, mas fica menos suspeito.
Graziela saiu em busca da delegacia. Semanas antes ela tivera um problema aborrecido com repartições, depois que um maluco cruzou uma rua a toda e bateu em seu carro. Foi um tal de andar para lá e para cá levando os documentos mais estapafúrdios, que ela quase desistiu. A gerente da seguradora solicitou a licença de uso de esmaltes de cores vivas. Diga-se de passagem que ela exibe as unhas mais alegres, agitadas, excitantes que se vê na sua repartição. A cada semana ela muda as cores, produz tons inusitados. Existe até uma Bolsa do Esmalte, com um bolão para descobrir a cor que ela vai usar. Em sete anos de casa, jamais repetiu. Adora ver o espanto dos colegas quando exibe as unhas, na manhã de quarta-feira. O bolão virou uma bolada, sem trocadilho. A turma usa tíquetes-refeição como dinheiro. Agora, ela promete pintar também as unhas dos pés, e ter um celular colorido nos mesmos tons dos cintos e dos brincos.
Bem, na delegacia, ela esperou longo tempo, distraindo-se com os tipos que entravam. Não identificando quem era marginal e quem era policial. Havia estranha simbiose na maneira de vestir, andar, nos esgares da boca, na gesticulação, na desconfiança que emanava de cada olhar, na agressividade do falar. Finalmente, a escrivã, de belos olhos azuis, a atendeu.
Qual é o problema, minha cara?
Preciso de autorização para entrar numa casa.
Uma ordem judicial? A senhora é policial?
Senhorita.
O termo de respeito que o Manual me determina é senhora.
Não sou policial.
Detetive particular?
Também não. Meu caso é particular.
E qual é o caso?
Estou contando as portas da minha rua e me faltam computar duas vilas cujos portões estão trancados.
Contando portas? É um recenseamento?
Não, uma pesquisa particular.
A senhora é cientista, antropóloga, socióloga, paleontóloga, arqueóloga, museóloga… É o quê?
Nada disso. Sou funcionária de um escritório de arquitetura, desenho fachadas.
Ah, é uma pesquisa sobre arquitetura? Por que precisa contar as portas?
Reservo-me o direito de guardar a informação.
Pois reservo-me o direito de não conceder autorização. Mesmo porque não existe amparo legal, você não se enquadra no 239 nem no 174 nem no 768 nem no 789 nem no 456738 nem no 563890 nem no 3425 nem no 1324 nem no 78564 nem no 8976…
Chega, chega! Por favor, me autorize entrar numa casa e olhar pela janela dos fundos…
Ah, pode ser o 3564789095, pode ser. Espere um pouco! Preciso ir aos arquivos. Já houve um caso, então tem precedente. Volte aqui, terei a informação, o documento.
Quando?
Hoje é julho de 1999. Venha no 4 de maio de 1999.
Está brincando? Andar para trás?
Não. Sério. Tenho que buscar nos livros.
E vamos voltar no tempo? Como?
Não sei. Minha agenda é assim, só tem vagas para trás. Por que as pessoas se recusam a voltar nos dias, a percorrer de novo os próprios passos?
Não entendo… O que está dizendo?
Nem queira entender… não conseguirá. Dependo dos livros.
E os computadores?
As coisas mais antigas se recusaram a ser copiadas nos computadores. A gente digitava o texto, salvava, ele deletava sozinho. Tentamos escanear as páginas, mas, quando abríamos os arquivos, deparávamos com páginas em branco. Desse modo, só nos resta consultar os livros. Porém, os funcionários estão de tal modo acostumados com a informatização que não sabem consultar livros. Terei de arranjar alguém inteligente, curioso e de boa vontade que faça um curso de leitura, que aprenda a virar as páginas, que saiba ler palavras escritas à mão em lugar de letras digitadas. Só que para isso terei que arranjar verbas e os tempos são de ausência de inflação e recessão profunda. Ou, então, a senhora consiga um patrocinador, uma empresa que arque com os custos…
Desanimada, Graziela preparou-se para ir embora. Apoiou as mãos na mesa e a escrivã reparou em suas unhas.
O quê? Suas unhas são coloridas! Esplêndidas!
São…
Adoro unhas coloridas, mas minha mãe, depois meus maridos, depois meus filhos, depois a organização policial nunca me autorizaram a pintá-las. Daria tudo para ter unhas coloridas. Qual a sensação?
Nem queira saber! Deslumbrante, cheia de perplexidades. Conto se você me autorizar a entrar na casa.
A escrivã cerrou os belos olhos azuis e começou a pensar.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

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