Ela
ia para o trabalho a pé, contando tudo. No primeiro dia, quando
descobriu o prazer da contagem, marcou em seu caderninho 113 portas
entre bares, residências, lojas, garagens, oficinas mecânicas,
escritórios de paisagistas, assessorias para o mundo da moda,
lanchonetes. Percebeu que, às vezes, entre uma casa e outra existia
um corredor estreito que levava a uma vila nos fundos. Portanto,
havia mais portas a contar, o número estava incompleto.
No
dia seguinte, entrou nos portões, foi aos fundos, completou as
estatísticas, com exceção de dois lugares que estavam trancados.
Bateu, tocou a campainha. Sem resposta. Deve ser gente que trabalha
fora, devo voltar à noite. Ainda assim não conseguiu entrar. Pelo
interfone, vinham perguntas ásperas:
– O
que quer?
– Sabe…
é difícil explicar… preciso conversar cara a cara… sabe…
estou contando as portas.
– Contando
portas? Qual é a tua?
– Preciso
saber quantas portas existem na vila!
– Não
tem mais o que fazer?
– Por
favor! Por favor! Nem precisa vir aqui. Me diga quantas casas tem a
vila, quantas portas dão para fora.
– Vou
chamar a polícia!
– Por
que polícia?
– Fica
sondando para ver se pode roubar. Roubo anunciado! Essa não! Está
impossível viver na cidade.
Desligaram.
Graziela voltou para casa, abriu seu caderno. Nele havia de tudo.
Ideias, trechos de cartas para o namorado, pétalas de flores. Como
descobrir? A menos que pedisse em alguma casa da frente que alguém a
deixasse entrar. Olhando pelos fundos, contaria as portas. Nova
tentativa. Inútil.
– Quer
entrar em casa para quê?
– Para
contar as portas da vila.
– Contar
portas? O que você é? Uma fiscal? Policial? Algum departamento
desconhecido do governo? Alguma coisa relacionada com impostos novos?
Tem autorização, identificação, uma carta que explique os
motivos?
– Uma
carta?
– Uma
carta, sim! Da polícia, por exemplo. De um juiz, de alguém que
responda pela sua idoneidade.
(Idoneidade?
Que palavra?)
– Com
uma carta poderei entrar?
– Não
prometo, mas fica menos suspeito.
Graziela
saiu em busca da delegacia. Semanas antes ela tivera um problema
aborrecido com repartições, depois que um maluco cruzou uma rua a
toda e bateu em seu carro. Foi um tal de andar para lá e para cá
levando os documentos mais estapafúrdios, que ela quase desistiu. A
gerente da seguradora solicitou a licença de uso de esmaltes de
cores vivas. Diga-se de passagem que ela exibe as unhas mais alegres,
agitadas, excitantes que se vê na sua repartição. A cada semana
ela muda as cores, produz tons inusitados. Existe até uma Bolsa do
Esmalte, com um bolão para descobrir a cor que ela vai usar. Em sete
anos de casa, jamais repetiu. Adora ver o espanto dos colegas quando
exibe as unhas, na manhã de quarta-feira. O bolão virou uma bolada,
sem trocadilho. A turma usa tíquetes-refeição como dinheiro.
Agora, ela promete pintar também as unhas dos pés, e ter um celular
colorido nos mesmos tons dos cintos e dos brincos.
Bem,
na delegacia, ela esperou longo tempo, distraindo-se com os tipos que
entravam. Não identificando quem era marginal e quem era policial.
Havia estranha simbiose na maneira de vestir, andar, nos esgares da
boca, na gesticulação, na desconfiança que emanava de cada olhar,
na agressividade do falar. Finalmente, a escrivã, de belos olhos
azuis, a atendeu.
– Qual
é o problema, minha cara?
– Preciso
de autorização para entrar numa casa.
– Uma
ordem judicial? A senhora é policial?
– Senhorita.
– O
termo de respeito que o Manual me determina é senhora.
– Não
sou policial.
– Detetive
particular?
– Também
não. Meu caso é particular.
– E
qual é o caso?
– Estou
contando as portas da minha rua e me faltam computar duas vilas cujos
portões estão trancados.
– Contando
portas? É um recenseamento?
– Não,
uma pesquisa particular.
– A
senhora é cientista, antropóloga, socióloga, paleontóloga,
arqueóloga, museóloga… É o quê?
– Nada
disso. Sou funcionária de um escritório de arquitetura, desenho
fachadas.
– Ah,
é uma pesquisa sobre arquitetura? Por que precisa contar as portas?
– Reservo-me
o direito de guardar a informação.
– Pois
reservo-me o direito de não conceder autorização. Mesmo porque não
existe amparo legal, você não se enquadra no 239 nem no 174 nem no
768 nem no 789 nem no 456738 nem no 563890 nem no 3425 nem no 1324
nem no 78564 nem no 8976…
– Chega,
chega! Por favor, me autorize entrar numa casa e olhar pela janela
dos fundos…
– Ah,
pode ser o 3564789095, pode ser. Espere um pouco! Preciso ir aos
arquivos. Já houve um caso, então tem precedente. Volte aqui, terei
a informação, o documento.
– Quando?
– Hoje
é julho de 1999. Venha no 4 de maio de 1999.
– Está
brincando? Andar para trás?
– Não.
Sério. Tenho que buscar nos livros.
– E
vamos voltar no tempo? Como?
– Não
sei. Minha agenda é assim, só tem vagas para trás. Por que as
pessoas se recusam a voltar nos dias, a percorrer de novo os próprios
passos?
– Não
entendo… O que está dizendo?
– Nem
queira entender… não conseguirá. Dependo dos livros.
– E
os computadores?
– As
coisas mais antigas se recusaram a ser copiadas nos computadores. A
gente digitava o texto, salvava, ele deletava sozinho. Tentamos
escanear as páginas, mas, quando abríamos os arquivos, deparávamos
com páginas em branco. Desse modo, só nos resta consultar os
livros. Porém, os funcionários estão de tal modo acostumados com a
informatização que não sabem consultar livros. Terei de arranjar
alguém inteligente, curioso e de boa vontade que faça um curso de
leitura, que aprenda a virar as páginas, que saiba ler palavras
escritas à mão em lugar de letras digitadas. Só que para isso
terei que arranjar verbas e os tempos são de ausência de inflação
e recessão profunda. Ou, então, a senhora consiga um patrocinador,
uma empresa que arque com os custos…
Desanimada,
Graziela preparou-se para ir embora. Apoiou as mãos na mesa e a
escrivã reparou em suas unhas.
– O
quê? Suas unhas são coloridas! Esplêndidas!
– São…
– Adoro
unhas coloridas, mas minha mãe, depois meus maridos, depois meus
filhos, depois a organização policial nunca me autorizaram a
pintá-las. Daria tudo para ter unhas coloridas. Qual a sensação?
– Nem
queira saber! Deslumbrante, cheia de perplexidades. Conto se você me
autorizar a entrar na casa.
A
escrivã cerrou os belos olhos azuis e começou a pensar.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas
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