Um
vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam,
divertidas, a vê-los.
— É
o quê?, perguntavam
— Ora,
são apenas dois palhaços discutindo.
Quem
os podia levar a sério? Ridículos, os dois cômicos ripostavam. Os
argumentos eram simples disparates, o tema era uma ninharice. E
passou-se um inteiro dia.
Na
manhã seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se.
Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca. Na via pública, no
entanto, os presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram
agravando os insultos, em afiadas e afinadas maldades. Acreditando
tratar-se de um espetáculo, os transeuntes deixavam moedinhas no
passeio.
No
terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de facto. As
chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos
corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos.
E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmos se tropeçando. E
os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.
— Pai,
me dê as moedinhas para eu deitar no passeio.
No
quarto dia, os golpes e murros se agravaram. Por baixo das pinturas,
o rosto dos bobos começava a sangrar. Alguns meninos se assustaram.
Aquilo era verdadeiro sangue?
— Não
é a sério, não se aflijam, sossegaram os pais.
Em
falha de trajetória houve quem apanhasse um tabefe sem direção.
Mas era coisa ligeira, só servindo para aumentar os risos. Mais e
mais gente se ia juntando.
— O
que se passa?
Nada.
Um ligeiro desajuste de contas. Nem vale a pena separá-los. Eles se
cansarão, não passa o caso de uma palhaçada.
No
quinto dia, contudo, um dos palhaços se muniu de um pau. E avançando
sobre o adversário lhe desfechou um golpe que lhe arrancou a
cabeleira postiça. O outro, furioso, se apetrechou de simétrica
matraca e respondeu na mesma desmedida. Os varapaus assobiaram no ar,
em tonturas e volteios. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi
atingido. O homem caiu, esparramorto.
Levantou-se
certa confusão. Os ânimos se dividiram. Aos poucos, dois campos de
batalha se foram criando. Vários grupos cruzavam pancadarias. Mais
uns tantos ficaram caídos.
Entrava-se
na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que uma tonta
zaragata se instalara em redor de dois palhaços. E que a coisa
escaramuçara toda a praça. E a vizinhança achou graça. Alguns
foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltavam com
contraditórias e acaloradas versões. A vizinhança se foi
dividindo, em opostas opiniões. Em alguns bairros se iniciaram
conflitos.
No
vigésimo dia se começaram a escutar tiros. Ninguém sabia
exatamente de onde provinham. Podia ser de qualquer ponto da cidade.
Aterrorizados, os habitantes se armaram. Qualquer movimento lhes
parecia suspeito. Os disparos se generalizaram. Corpos de gente morta
começaram a se acumular nas ruas. O terror dominava toda a cidade.
Em breve, começaram os massacres.
No
princípio do mês, todos os habitantes da cidade haviam morrido.
Todos exceto os dois palhaços. Nessa manhã, os cômicos se sentaram
cada um em seu canto e se livraram das vestes ridículas. Olharam-se,
cansados. Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a bandeiras
despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas do
passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando não pisar
os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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