sábado, 19 de janeiro de 2019

"Quem é este homem?”

Quando S. entrou no atelier, percebi que tinha de aprender tudo se queria dividir nas suas minúsculas peças aquela segurança, aquele sangue-frio, aquele modo irônico de ser belo e ter saúde, aquela insolência todos os dias estudada para ferir onde mais doesse. Pedi muito mais do que costumo cobrar, e ele concordou e deu sinal imediatamente. Mas devia ter largado o pincel logo na primeira pose, quando me achei humilhado, sem saber de quê concretamente, sem que uma palavra tivesse sido dita: bastou o primeiro olhar, e eu disse: “quem é este homem?”. Esta é precisamente a pergunta que nenhum pintor deve fazer a si mesmo, e eu fi-la. Tão arriscado é fazê-la como dizer ao psicanalista que leve mais longe, só um pouco mais, o seu interesse pelo doente: podem dar-se todos os passos até a beira do precipício, mas daí para diante será a queda inevitável, desamparada, mortal. Toda a pintura deve ser feita do lado de cá, e creio que a psicanálise também. Precisamente para me conservar do lado de cá, é que comecei o segundo retrato: salvava-me no jogo duplo que fazia, tinha comigo um trunfo que me permitia pairar sobre o abismo, enquanto aparentemente me afundava na derrota, na humilhação de quem tentou e falhou, à vista de toda a gente e por dentro dos seus próprios olhos. Mas o jogo complicou-se, e agora sou um pintor que errou duas vezes, que persevera no erro porque não pode sair dele e tenta o caminho desviado de uma escrita cujos segredos ignora: mal ou bem comparado, vou procurar decifrar um enigma com um código que não conheço.
Foi só hoje que decidi tentar o retrato definitivo de S. desta maneira. Não creio que em momento algum dos últimos dois meses (fez anteontem exatamente dois meses que comecei o primeiro retrato) a ideia me tivesse ocorrido. Mas, caso singular, ela veio naturalmente, sem me surpreender, sem que eu a tivesse discutido em nome da minha incapacidade literária, e o primeiro gesto que desencadeou foi a compra deste papel, tão à vontade como se estivesse adquirindo tubos de tintas ou um jogo de pincéis novos. Andei o resto do dia fora (não tinha combinado qualquer sessão de pose), saí da cidade no carro, levando ao lado a resma de papel, como quem passeia uma nova conquista, daquelas para quem o automóvel é já lençol de cima. Jantei sozinho. E quando voltei a casa, fui direito ao atelier, destapei o retrato, lancei uma pincelada ao acaso, tornei a cobrir a tela. Depois fui ao quarto do fundo, onde guardo as malas e pinturas velhas, repeti os gestos no segundo retrato, com a intensidade automática de quem pratica o milésimo exorcismo, e vim sentar-me aqui, neste pequeno reduto que é o meu quarto de cama, meio biblioteca, meio fojo, onde as mulheres nunca gostaram de demorar-se.
Que quero eu? Primeiramente, não ser derrotado. Depois, se possível, vencer. E vencer será, quaisquer que sejam os caminhos por onde ainda me levem os dois retratos, procurar descobrir a verdade de S. sem que ele o suspeite, já que a sua presença e as suas imagens são testemunhas duma minha incapacidade provada de satisfazer satisfazendo-me. Não sei que passos darei, não sei que espécie de verdade busco: apenas sei que se me tornou intolerável não saber. Tenho quase cinquenta anos, cheguei à idade em que as rugas deixam de acentuar a expressão, para serem expressão doutra idade que é a velhice aproximando-se, e de repente, outra vez o digo, tornou-se-me intolerável perder, não saber, continuar a fazer gestos na escuridão, ser um autômato que todas as noites sonhasse evacuar a fita perfurada do seu programa: uma longa tênia que fora a única vida existente entre os circuitos e os transistores.
Perguntem-me se tomaria igual decisão mesmo que S. não aparecesse, e eu não saberei responder. Creio que sim, tomaria, mas não posso jurar. No entanto, agora que comecei a escrever, sinto-me como se nunca tivesse feito outra coisa ou para isto é que tivesse afinal nascido.
Observo-me a escrever como nunca me observei a pintar, e descubro o que há de fascinante neste ato: na pintura, vem sempre o momento em que o quadro não suporta nem mais uma pincelada (mau ou bom, ela irá torná-lo pior), ao passo que estas linhas podem prolongar-se infinitamente, alinhando parcelas de uma soma que nunca será começada, mas que é, nesse alinhamento, já trabalho perfeito, já obra definitiva porque conhecida. É sobretudo a ideia do prolongamento infinito que me fascina. Poderei escrever sempre, até ao fim da vida, ao passo que os quadros, fechados em si mesmos, repelem, são eles próprios isolados na sua pele, autoritários, e, também eles, insolentes.
José Saramago, in Manual de pintura e caligrafia

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