sábado, 12 de janeiro de 2019

Adélia de joelhos

Há muitos anos, visitei Adélia Prado em Divinópolis. Levou-me para a cozinha e, enquanto descascava batatas, conversamos sobre Virgílio. Nos intervalos, enxugava as mãos em um pano e recitava poemas. O avental estava amassado e os cabelos presos com um elástico. Era uma mulher qualquer, sem pose ou orgulho. A poesia era tão simples quanto um prato de arroz.
Tantos anos depois, com a mesma voz sem afetação, Adélia Prado entrega a seus leitores um novo livro. Versos em que a palavra se mistura com a aflição. “Escreve-se para dizer/ sou mais que meu pobre corpo”. As palavras lutam para ultrapassar a carne, mas ficam presas em suas fendas. Ninguém se livra de si. A poesia tenta disfarçar a dor, mas, em vez disso, a dor se duplica.
Escreve Adélia: “Os óculos do escritor o atestam/ lentes que para dentro olham”. Como se não fosse poeta, observa a figura do escritor em seu gabinete. Observa a si mesma, que tem uma cozinha (peneiras, conchas, panelas) como sala de escrita. Enquanto escreve, Adélia entra em si mesma. Busca alguma coisa sem forma e sem nome que ela, religiosa, talvez chame de alma.
Não importa a palavra. A duração do dia (Record), seu novo livro de poemas, parte da ideia (tomada do poeta polonês Czeslaw Milosz) de que “a poesia é algo horrível”. A beleza se mistura com o horror. Penso nos poetas pernósticos que pontificam, cheios de ideias, nas livrarias. Desconhecem o veneno em que afundam. Mas será que afundam ou, retidos na superfície, só esperneiam?
Não é fácil suportar o espanto. Ele não vem de fora, das esferas hostis do inimigo, mas de dentro. “Nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós”, Adélia diz. O poeta é um ser passivo, que se esconde nos fornos e nas dispensas, e não esse tagarela que pontifica nos bares. “Caminho sobre o planeta/ como os equilibristas em suas bolas gigantes/ não se sai do lugar/ de si mesmo não se pode sair”.
Dizem os pedantes que Adélia repete sempre a mesma pergunta a respeito de Deus. Não percebem que essa ronda é a própria poesia. Preso em si, o poeta não habita o paraíso. Pode ver Deus, mas está no inferno. Adélia o descreve: “Amo o deserto,/ mas por causa das cobras/ não alcanço o repouso/ de sua cama de areia”.
Sempre que leio Adélia, me assombro com as figuras antigas que rastejam entre seus versos. Lentas e imundas, arrastam a placenta. Elas lembram o galo que, olhando fixo para lugar nenhum, “bruto como um profeta”, anuncia “a luz arcaica,/ a que antes de tudo/ no coração da treva preexistia”. Assim escreve Adélia: descascando o arcaico.
Persegue o território que antecede a palavra. Função da poesia: em vez de narrar, ou comunicar, ou evocar – entrar em contato com o que não se deixa dizer. Voltar aos tempos remotos em que gaguejávamos. Recuperar os murmúrios que antecederam as palavras e que ainda hoje, como cobras desprezíveis, rondam o cotidiano. Ali se guarda o pior, mas também o melhor.
Em um poema chamado “Divinópolis”, Adélia evoca o pai morto. Quando o trem passou, uma grande composição, ele, o pai, corrompendo a palavra, disse: “cumpusição”. Com ele, aprendeu a delícia de torcer a língua e gaguejar. Versos que brilham como relíquias de ouro velho “restam inaproveitáveis”. Versos não devem reluzir, mas talhar. A poesia não é uma pose, mas uma queda.
Assim define Adélia: “Ao crepúsculo me visita/ essa memória dourada,/ mentira meio existida,/ verdade meio inventada”. A poesia é, por definição, suja, e só por isso se aproxima de Deus. Ambos, Deus e poesia, não suportam a pressão do nome. Dizemos: poesia, Deus – mas o que isso significa? Palavras, ela sugere, não passam de miseráveis aparências. “Nome é tão importante/ quanto o jeito correto de se apresentar a entrevistas”, diz, com ironia.
Palavras são disfarces, precárias fantasias. “As palavras cansam porque não alcançam/ e preciso de muitas pra dizer uma só”. Ao contrário do filósofo que afia e cultua o conceito, o poeta enxovalha a palavra, a desgasta, retorce. Só a usa porque algo lhe falta. Tivesse mais, e se calaria. O silêncio é o ideal do poeta. Ao escrever, Adélia puxa uma pele atrás da outra e, como nas cebolas, chega sempre a um centro vazio.
O orgulho fede como um bom cadáver”, ela diz, como se ajoelhasse – não diante de Deus (ou que seja), mas do próprio corpo. Na verdade, não é Adélia que se ajoelha. Algo nela se abaixa e, quando vê, está deitada no silêncio. Conhece o horror que sai de si. “Ter medo é saber do inaudito/ ninguém até hoje explica/ por que batem as pálpebras”, ela diz. Ajoelha-se diante do que não se pode dizer, não como reverência ou adoração, mas por cansaço mesmo. E isso, ceder ao peso do mundo, é a poesia.
Eu a vi refogando legumes, esfregando panelas. Gestos simples e mecânicos, quase feios. Ali, entre ovos e xícaras, encontrei seu caderno de versos. “Não queria palavras para rezar/ bastava-me ser um quadro/ bem na frente de Deus/ para Ele olhar”. Basta-lhe o silêncio e os joelhos ardendo sobre a terra dura. Eis a poesia: no lugar do autor onipotente e falastrão, uma mulher que se esvazia e se cala. Em vez do brilho, a submissão. Eis, enfim, o erotismo. O gesto de seduzir e se entregar não é uma rendição, mas uma celebração.
Ah, Adélia, isso não é poesia”, dizem. Quantos a recusam, só porque ela se nega ao brilho? O que não suportam? “Deus não é uma luz”, escreve, “Deus é pessoa”. Está a seu lado, junto ao fogão, talvez de cócoras. Juntos, observam as palavras, estendidas sobre a mesa, retalhadas pela dor, sangrando. Quase inúteis – porque não dão conta da carne. E, no entanto – eis o horror –, tudo o que um poeta tem é a poesia. “Ainda me restam coisas mais potentes que hormônios.”
Revejo Adélia, entre os filhos, abnegada. À distância, admira o marido, não porque ele seja especial (talvez seja), mas porque é um homem. A poesia de Adélia nos reaproxima da vida. Debruçada sobre a pia, perplexa, ela fita a água suja que escorre pelo ralo. Vigia a poesia, que não passa do que sobra quando, com a boca trêmula, lutamos para falar.
José Castelo, in Sábados inquietos

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