domingo, 20 de janeiro de 2019

A manta

Não dediquei pouca atenção a esse assunto um tanto incômodo, a pele da baleia. Entrei em discussões a esse respeito com experientes baleeiros de bordo e doutos naturalistas de terra. A minha opinião inicial ainda é a mesma; contudo, é apenas uma opinião.
Eis o problema – o que é, e onde está, a pele da baleia? Você já sabe o que é sua gordura. A gordura tem algo da consistência firme e fibrosa da carne do boi, embora mais dura, mais elástica e compacta, com uma espessura de oito ou dez a doze ou quinze polegadas.
Ora, por mais absurdo que pareça à primeira vista afirmar que uma criatura tenha uma pele com tal espessura e consistência, de fato não existem argumentos contra tal hipótese; porque não se encontra nenhuma outra camada densa envolvendo o corpo da baleia, salvo essa mesma gordura; e a mais externa camada que envolva qualquer animal, se consideravelmente densa, o que pode ser senão sua pele? De fato, raspando o corpo da baleia morta e ainda fresca com as próprias mãos você pode extrair uma substância infinitamente fina e transparente, que lembra um pouco a mais fina lâmina de cola de peixe, mas quase tão flexível e macia quanto o cetim; isto é, antes de ficar seca, quando não apenas se contrai e engrossa, como também se torna dura e quebradiça. Tenho vários desses pedaços secos, que uso para marcar meus livros sobre baleias. São transparentes, como disse antes; e quando colocados sobre a página impressa, muito me apraz imaginar que pudessem ter um efeito de aumento. De qualquer modo, é muito agradável ler sobre as baleias através de suas próprias lentes, por assim dizer. Mas eis aonde quero chegar. Aquela mesma substância infinitamente fina, a cola de peixe, que, digo, reveste o corpo todo da baleia, não pode ser considerada a pele do animal, mas a pele da pele, por assim dizer; pois seria simplesmente ridículo afirmar que a pele da imensa baleia é mais fina e macia do que a pele de um bebê recém-nascido. Mas vamos encerrar este assunto.
Admitindo que a gordura seja mesmo a pele da baleia; então, quando essa pele, como no caso de um grande Cachalote, produz um volume de cem barris de óleo; e quando consideramos que em quantidade, ou melhor, em peso, tal óleo, em seu estado outrora referido, representa apenas três quartos, e não toda a substância do revestimento; teremos uma ideia da enormidade dessa massa viva, da qual uma simples parte do tegumento produz tamanho lago de óleo. Calculando dez barris por tonelada, você tem dez toneladas em peso líquido para apenas três quartos da pele da baleia.
Em vida, a superfície visível do Cachalote não é a menor de suas muitas maravilhas. Quase sempre é inteiramente cruzada e recruzada por inúmeros traços retos em arranjo cerrado, como as linhas das melhores gravuras Italianas. Mas esses traços não parecem estar impressos na referida substância do revestimento, mas parecem atravessá-la, como se estivessem gravados no próprio corpo. Mas isso não é tudo. Em alguns casos, para um olhar rápido e perspicaz, aqueles traços lineares, como nas verdadeiras gravuras, apenas servem de base para vários outros desenhos. Esses são hieroglíficos; isto é, se você chama aqueles misteriosos criptogramas das paredes das pirâmides de hieróglifos, então essa é a palavra certa para se usar na presente ocasião. Por minha boa memória dos hieróglifos de um Cachalote em especial, impressionou-me sobremaneira um quadro que representava antigos caracteres Indígenas, traçado nas famosas paliçadas hieroglíficas dos barrancos do alto Mississippi. Assim como os enigmáticos rochedos, também a baleia assinalada de enigmas permanece indecifrada. Essa referência aos rochedos indígenas me fez lembrar de mais uma coisa. Além de todos os demais fenômenos exteriores que o Cachalote apresenta, ele amiúde dispõe de dorso, e ainda mais de flancos, desprovidos das visíveis linhas regulares, em razão dos numerosos e terríveis arranhões que lhe dão um aspecto acidental e irregular. Eu diria que esses rochedos no litoral da Nova Inglaterra, os quais, assim crê Agassiz, trazem as marcas de um violento contato abrasivo com enormes icebergs flutuantes – eu diria que tais rochedos revelam não pouca semelhança com o Cachalote neste particular. Também me parece que tais arranhões na baleia foram possivelmente feitos por um contato hostil com outras baleias; pois os vi em maior número nos machos grandes e adultos da espécie.
Mais uma ou duas palavras sobre o assunto da pele ou gordura da baleia. Já foi dito que ela é arrancada da baleia em pedaços compridos, chamados de mantas. Como a maior parte dos termos náuticos, este é muito conveniente e significativo. Pois a baleia está de fato embrulhada em sua gordura como numa manta ou numa colcha; ou, melhor ainda, como num poncho Indígena, que enfiado pela cabeça chegasse até a outra ponta. É devido a essa proteção aconchegante de seu corpo que a baleia encontra meios de se sentir confortável em quaisquer condições climáticas, em todos os oceanos, tempos e marés. O que aconteceria com a baleia da Groenlândia, por exemplo, nos mares setentrionais frios e trépidos, se não dispusesse desse sobretudo aconchegante? Em verdade, outros peixes são encontrados bem vivos naquelas águas Hiperbóreas; mas esses, que fique claro, são peixes de sangue frio, desprovidos de pulmões, cujas barrigas são geladeiras; criaturas que se aquecem a sotavento de um iceberg, como um viajante no inverno se aqueceria diante de uma lareira numa estalagem; ao passo que, como os homens, a baleia tem pulmões e sangue quente. Congele seu sangue, e ela morrerá. Como é espantoso – salvo depois dessa explicação– que esse imenso monstro, para o qual o calor do corpo é tão indispensável quanto para o homem; como é espantoso que ele possa ser encontrado à vontade submerso até os lábios, para o resto da sua vida, naquelas águas Árticas! Lugar onde, quando caem para fora dos navios, os marinheiros são às vezes encontrados, depois de meses, perpendicularmente congelados no coração dos campos de gelo, como uma mosca encontrada presa ao âmbar. Mas ainda mais surpreendente é saber que, como foi demonstrado por experimento, o sangue de uma baleia Polar é mais quente do que o de um negro de Bornéu em pleno verão.
Parece-me que aqui vemos a rara virtude de uma vitalidade individual poderosa, e a grande virtude das paredes espessas, e a grande virtude de uma imensidão interior. Ah, homem! Admira e espelha-te na baleia! Permanece aquecido, tu também, no gelo. Vive neste mundo, tu também, sem pertencer a ele. Sê frio no Equador; mantém o sangue correndo no Pólo. Como a grande cúpula da Catedral de São Pedro, e como a grande baleia, mantém, ó, homem, a tua própria temperatura em todas as estações!
Mas quão fácil e inútil é ensinar essas coisas belas! Das construções, quão poucas são as que têm uma cúpula como a Catedral de São Pedro! Das criaturas, quão poucas têm a magnitude da baleia!
Herman Melville, in Moby Dick

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