sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

02/10/91 - 23:03

A morte vem para aqueles que esperam e aqueles que não esperam. Dia escaldante, hoje, maldito dia escaldante. Saí do correio e meu carro não pegou. Bom, eu sou um cidadão decente. Sou membro do Auto Club. Assim, precisei de um telefone. Há 40 anos, havia telefones em todo lado. Telefones e relógios. Você sempre podia olhar para o lado e ver que horas eram. Isto não existe mais. Não há mais hora grátis. E os telefones públicos estão desaparecendo.
Fui por instinto. Fui ao correio, desci uma escada e lá, num canto escuro, sozinho e sem ser anunciado, estava um telefone. Um telefone sujo e grudento. Não havia outro num raio de três quilômetros. Sabia como fazer um telefone funcionar. Talvez. Informações. A voz da telefonista surgiu e achei que estava salvo. Era uma voz calma e entendiada e me perguntou que cidade eu queria. Disse a cidade e o autoclube. (Você tem que saber como fazer as pequenas coisas e você tem que fazê-las sem parar ou está morto. Morto nas ruas. Ignorado, indesejável.) A moça me deu um número, mas era o número errado. Do escritório. Depois consegui a oficina. Uma voz de macho, calma, cansada, mas combativa. Maravilhoso. Dei a ele a informação. “30 minutos”, ele disse.
Voltei ao carro, abri uma carta. Era um poema. Cristo. Era sobre mim. E ele. Nos encontramos, parece, duas vezes, há 15 anos. Ele também tinha me publicado em sua revista. Eu era um grande poeta, ele disse, mas eu bebia. E tinha vivido uma vida desgraçada e marginal. Hoje, os jovens poetas bebiam e viviam vidas miseráveis e marginais porque eles achavam que era assim que se fazia. Também, que eu tinha atacado outras pessoas em meus poemas, inclusive ele. E que eu tinha imaginado que ele tinha escrito poemas desfavoráveis sobre mim. Não é verdade. Ele era uma pessoa legal, disse que tinha publicado vários outros poetas em sua revista, por 15 anos. E eu não era uma pessoa legal. Eu era um grande escritor, mas não uma pessoa legal. E ele nunca teria se “amigado” comigo. Foi isso que ele escreveu: “amigado”. E ele escrevia “vosê” o tempo todo em vez de “você”... A ortografia dele não era boa.
Estava quente dentro do carro. Fazia 39 graus, o primeiro de outubro mais quente desde 1906.
Eu não ia responder à sua carta. Ele escreveria de novo.
Outra carta de um agente, contendo o trabalho de um escritor. Dei uma olhada. Ruim. É claro. “Se você tiver qualquer sugestão sobre seu texto ou qualquer dica de publicação, gostaríamos muito...”
Outra carta de uma senhora me agradecendo por eu ter escrito algumas linhas ao seu marido e feito um desenho por sua sugestão, que isto o tinha deixado muito feliz. Mas agora estavam divorciados e ela estava fazendo trabalhos free lance e ela poderia vir e me entrevistar?
Duas vezes por semana recebo pedidos de entrevistas. Não há muito o que dizer. Existem muitas coisas para se escrever, mas não para se falar.
Lembro de uma vez, nos velhos tempos, de um jornalista alemão que me entrevistou. Enchi-o de vinho e falamos por quatro horas. Depois disso, ele se inclinou para frente, bêbado, e disse: “Não sou um jornalista. Só queria uma desculpa para te ver”...
Joguei as cartas de lado e fiquei sentado esperando. Daí vi o caminhão-guincho. Um cara jovem e sorridente. Um garoto legal. Claro.
EI, GAROTO!”, gritei, “AQUI!”
Ele deu uma ré, saí do carro e contei o problema.
Me reboca até a oficina Acura”, disse para ele.
O carro ainda está na garantia?”, perguntou.
Ele sabia muito bem que não estava. Estávamos em 1991 e eu estava dirigindo um modelo 1989.
Não interessa”, disse eu, “me reboca até a loja Acura.”
Eles vão levar um tempão para consertar, talvez uma semana.”
Claro que não, eles são bem rápidos.”
Escute”, disse o garoto, “temos nossa própria oficina. Podemos levar o carro lá, talvez consertá-lo hoje. Se não, nós te registramos e telefonamos assim que possível.”
Naquele momento, visualizei meu carro na sua oficina por uma semana. Pra me dizerem que eu precisava de um novo eixo excêntrico. Ou fixar as cabeças de cilindro.
Me reboca para a Acura”, eu disse.
Espere”, disse o garoto. “Tenho que ligar para o chefe primeiro.”
Esperei. Ele voltou.
Ele disse pra fazer pegar no tranco.”
O quê?”
Pegar no tranco.”
Tudo bem. Vamos lá.”
Entrei no meu carro e deixei que escorregasse até o caminhão. Ele me puxou um pouco e o carro deu a partida imediatamente. Assinei os papéis e ele foi embora e eu fui embora...
Então, decidi deixar o carro na oficina da esquina.
Nós conhecemos você. Você tem vindo aqui há anos”, disse o gerente.
Legal”, disse eu, e sorri: “Então, não me sacaneiem.”
Ele só me olhou.
Nos dê 45 minutos.”
Tudo bem.”
Precisa de uma carona?”
Claro.”
Apontou. “Ele te leva.”
Um garoto legal parado ali. Fomos até o carro dele. Dei o endereço a ele. Subimos a colina. “Você ainda está fazendo filmes?”, me perguntou.
Eu era uma celebridade, sabe.
Não”, eu disse. “Foda-se Hollywood.”
Ele não entendeu aquilo.
Pare aqui”, eu disse.
Ei, esta casa é grande.”
Eu só trabalho aqui”, disse eu.
Era verdade.
Saí do carro. Dei dois dólares a ele. Ele protestou, mas ficou com eles.
Andei pelo caminho da entrada. Os gatos estavam espalhados por ali, esgotados. Na minha próxima vida, quero ser um gato. Dormir 20 horas por dia e esperar ser alimentado. Sentar por aí lambendo meu cu. Os humanos são desgraçados demais, irados demais, obcecados demais.
Fui pra cima e sentei na frente do computador. É o meu novo consolador. Meu trabalho dobrou em potência e produção desde que o comprei. É uma coisa mágica. Sento na frente dele como a maioria das pessoas senta na frente dos seus aparelhos de tv.
É só uma máquina de escrever melhorada”, me disse meu genro uma vez.
Mas ele não é um escritor. Ele não sabe o que é quando as palavras surgem no espaço, brilham na luz, quando os pensamentos que vêm na sua cabeça podem ser seguidos imediatamente por palavras, que encorajam mais pensamentos e mais palavras a seguir. Com uma máquina de escrever, é como caminhar na lama. Com um computador, é como patinar no gelo. É uma rajada brilhante. Claro, se não há nada dentro de você, não importa. E depois tem o trabalho de limpeza, as correções. Diabos, eu costumava escrever tudo duas vezes. A primeira, para colocar as ideias, e a segunda, para corrigir os erros. Assim, é uma vez só para o divertimento, a glória e a fuga.
Imagino qual será o próximo passo depois do computador. Provavelmente, você só apertará os dedos nas têmporas e sairá esse monte de palavras perfeitas. É claro, você terá que encher o tanque antes de começar, mas tem sempre os sortudos que conseguem fazer isso. Espero.
O telefone tocou.
É a bateria”, ele disse,
você precisava de uma bateria nova.”
E se eu não puder pagar?”
Daí vamos ficar com a sua estepe.”
Já vou aí.”
E assim que comecei a descer a ladeira, ouvi meu vizinho idoso. Estava gritando para mim. Subi a escadaria da sua casa. Ele estava vestido com calças de pijama e um velho abrigo cinza. Fui até ele e o cumprimentei com um aperto de mãos.
Quem é você?”, perguntou.
Sou seu vizinho. Moro aqui há dez anos.”
Tenho 96 anos”, disse ele.
Eu sei, Charley.”
Deus não quer me levar porque Ele tem medo que eu fique com o emprego dele.”
Você poderia.”
Poderia ficar com o trabalho do Diabo, também.”
Poderia.”
Quantos anos você tem”?
71.”
71?”
É.”
Isso é ser velho também.”
É, eu sei, Charley.”
Apertamos as mãos e desci as escadas e depois ladeira abaixo, passando pelas plantas cansadas, pelas casas cansadas. Eu estava a caminho do posto de gasolina.
Mais um dia chutado no traseiro.
Charles Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio

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