sábado, 29 de dezembro de 2018

Rumo à face escura

Em “A tosse de uma senhora alemã”, um artigo breve que publicou em 1994 na revista Proa, de Buenos Aires, o escritor argentino Julio Cortázar defende a ideia de que a literatura é muito mais que um exercício de linguagem, e bem mais ainda que uma construção intelectual. Ela é uma espécie de operação fantástica, diz, que nos leva a “deslizar até um outro lado”. Lançados na face escura de nós mesmos, nossos poros se esgarçam. Experimentamos, então, sensações e ouvimos coisas que desconhecíamos. O artigo de Cortázar ressurge agora em Papéis inesperados (Civilização Brasileira, organização de Aurora Bernárdez e Carles Álvarez Garriga, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht).
A viagem à face escura começa no dia em que o escritor ouve uma antiga gravação do “Concerto em ré”, de Beethoven, realizada em 1947. Gravado ao vivo pela Rádio Alemã, o concerto – que tem na regência o falecido maestro Wilhelm Furtwängler – permaneceu esquecido durante trinta anos. Nos anos 1970, ele ressurge nos estúdios da rádio France-Musique, que lhe destina uma audição especial. Exilado em Paris, Cortázar ouve o concerto. Emociona-se não só com a regência de Furtwängler e com a performance do violinista judeu Yehudi Menuhin. Algo o afeta mais ainda.
Em meio a um “pianíssimo”, surge aquilo que realmente o derruba: um único golpe seco e claro de tosse. Uma tosse de mulher, que não se repete – a tosse imprevisível de uma senhora alemã. “Impossível saber quem tossiu naquela noite”, Cortázar medita. “Nenhuma ciência, nenhum cavalheiro Dupin poderia rastrear sua origem.” Contudo, é na tosse bruta e inconveniente, que surge fora do lugar e que não interessa a ninguém, que ele fixa sua atenção. Mais que a melodia de Beethoven ou a habilidade do violinista, é nela, naquele ruído desagradável e absurdo, que Cortázar constrói um caminho.
Mesmo a ciência, que a tudo captura, reflete o escritor, mesmo ela se torna impotente diante daquela tosse. Abandonando a catedral cheia de intenções de Beethoven, e atravessando a performance impecável do violinista Menuhin, um voluntarioso Cortázar desliza até os subterrâneos da plateia escura onde, trinta anos antes, uma desconhecida, atordoada por uma gripe ou por uma alergia passageira, não controla a tosse, permitindo que ela escape e se grave onde não devia estar nem devia se gravar.
Os críticos mais severos, por certo, lamentaram aquela tosse desnecessária e, mais que isso, inoportuna que por um ou dois segundos feriu a perfeição do concerto. Julio Cortázar faz exatamente o contrário: é daquele ponto deslocado e imprevisível que, ele percebe, algo vivo se desenrola e se fixa. É ali que a coisa está. Mas que coisa? Cortázar detecta naquela tosse “uma ponte e um sinal e um chamado”. Ponte, sinal e chamado que abrem um rombo na noite e sobre os quais a literatura, enfim, se ergue. A literatura vista não mais como a costura impecável de uma trama, mas como um incômodo e um ferimento.
Ainda penso nas ideias de Cortázar quando me cai nas mãos um livrinho simpático: 90 livros clássicos para apressadinhos, de Henrik Lange (editora Record, tradução e adaptação de Ota). Conservo ao meu lado a reunião dos inéditos do escritor argentino. Deixo os dois livros frente a frente; deixo que se desafiem e lutem. O que faz Henrik Lange senão buscar o sumo poderoso de noventa grandes romances? O que faz, ao contrário, Cortázar senão nos mostrar que este sumo não existe e que, mesmo que existisse, não teria importância alguma?
Detenho-me nas adaptações assinadas pelo desenhista sueco Henrik Lange de livros fabulosos como Odisseia, Em busca do tempo perdido, Morte em Veneza e Dom Quixote. Cada uma delas se comprime em uma única página, dividida em quatro partes, sendo a primeira, sempre, destinada ao título. Nas outras três, desenhos bem-humorados sustentam uma ou duas frases curtas, resumindo (comprimindo – como nas cápsulas fantasiosas vendidas para emagrecer) o livro que os preguiçosos não leem.
Lange se concentra no conteúdo das ficções, isto é, em seu enredo – naquilo que, em geral, supomos ser o próprio livro. Deixa de lado, assim, o que a ficção tem de mais próprio e que, de fato, constitui a sua alma: a voz singular (e feroz) de um autor. É claro: Henrik Lange extrai humor dessas reduções absurdas, mostrando o quanto é inútil se deter no enredo de um romance – como se bastasse a um doente ler a bula de um remédio para se curar, ou a um piloto estudar um guia de instruções aeronáutico para pilotar um avião. Ele denuncia, assim, o quanto é perigoso reduzir um livro a seu enredo. O quanto um enredo, em vez de fazer falar, amordaça e ilude.
Uma vez, em uma oficina literária, propus aos alunos que escrevessem uma pequena narrativa. Deveriam contar a história de uma mulher que, limpando o quarto de empregada, se depara com uma barata, a espreme contra a porta do armário e depois a leva à boca. Meus alunos riram de minha proposta, que acreditavam ser apenas uma piada cruel. Riram e debocharam até que uma moça, um tanto aflita, os interrompeu para exclamar: “Meu Deus, isso é A paixão segundo G. H., de Clarice!”. E era mesmo. Arranquei do mais genial romance que Clarice Lispector escreveu aquilo que ele tem de mais central, mas também de mais insuficiente, e lhes ofereci como um desafio. Tentei, assim, mostrar que toda escrita literária é lateral; que a literatura não se interessa pela boa organização, pelo relato coerente e pela ordem, mas, ao contrário, se debruça sobre tudo o que deles sobra.
Diz Julio Cortázar que a tosse da senhora alemã em meio ao concerto de Beethoven é “uma ponte e um sinal e um chamado”. Ponte que nos conduz a regiões que, em geral, desprezamos. Sinal da impossibilidade de normalizar o mundo real. Chamado para que tenhamos coragem de escutar o incoerente e o inconveniente. A literatura, nos mostra Cortázar, não é uma fantasia consoladora. Não é uma distração ou uma ilusão. Ela nos conduz aos limites escuros do humano e, assim, reafirma a importância de “viver porosamente, aberto a tudo o que habita e respira”.
José Castello, in Sábados inquietos

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