segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Vocês não viram Iracema?

I
Não”, disse um dos jovens cinéfilos.
Então percebi que estava envelhecendo. Quase ao mesmo tempo, percebi que os jovens desinformados de uma metrópole podem envelhecer precocemente. Porque quem gosta de cinema deveria ver Iracema, o clássico de Jorge Bodanzky.
O filme fez a cabeça da minha geração e sua atualidade é notável. É um documentário que pode ser visto como uma ficção. Mas é também uma ficção arraigada no cotidiano da Amazônia. Iracema dilui as fronteiras entre ficção e documentário. É uma mescla muito habilidosa de gêneros e, nesse sentido, foi um marco do cinema brasileiro. Há poucos e bons atores profissionais, mas a personagem principal é construída durante a filmagem: uma menina de quinze anos, atriz que se forma na estrada, diante da câmera, nos descaminhos de uma vida inventada, mas profundamente vivida. É como se o roteiro acompanhasse o imponderável e a própria maleabilidade da vida. Essa espontaneidade apenas aparente foi pensada e construída com rigor. Além disso, no caso de Iracema conta muito a experiência de Bodanzky na região Norte. O olhar do fotógrafo talentoso e tarimbado — sua atividade anterior e de sempre — está registrado em cada cena. Um olhar em movimento, que capta a expressão dos personagens — o que há no íntimo de cada ser. E, num ângulo mais aberto ou em panorâmica, capta os quadros calcinados e tristes de uma natureza destruída pela ganância e ignorância. A violência da vida brasileira não está na denúncia política, e sim onde interessa à arte: no drama particular de uma personagem.
O subtítulo — Uma transa amazônica — alude a uma das alucinações da ditadura militar: a estrada que rasga o coração da Amazônia e inaugura a devastação sistemática do meio ambiente.
O filme começa no porto de Belém e termina na estrada que fere a floresta, abrindo caminho para madeireiras, queimadas, trabalho escravo e prostituição. Iracema, de carona pela transamazônica, simboliza o descaminho de uma pobre mulher numa região tão rica, comentada e debatida, mas quase desconhecida. Daí a dimensão humana ser tão ou mais importante do que o delírio desenvolvimentista do regime militar.

II
Há pouco tempo fui ver o belo filme de Karim Aïnouz: O céu de Suely. Entre Suely e Iracema há mais do que uma aliteração. Há, acima de tudo, um diálogo de duas épocas num mesmo país dilacerado. Diálogo que passa por uma poética do olhar: uma maneira singular de ver o mundo, um recorte dramático construído pelo olhar.
Mais de trinta anos separam os dois filmes, mas eles se encontram no interior do Brasil e nos sonhos e pesadelos de suas protagonistas. Apesar das diferenças formais entre os dois filmes, alguma coisa une a trajetória dessas duas mulheres tão brasileiras. Talvez sejam histórias que se complementam, num movimento de continuidade que significa também uma ruptura. O fim de cada filme diz algo sobre o destino da personagem principal.
Numa pequena cidade do sertão, Suely rifa o próprio corpo, que será usado e abusado uma única vez. O nome da rifa — Uma noite no Paraíso — podia ser o subtítulo do filme de Aïnouz. Como a imensa maioria dos brasileiros, Suely e Iracema buscam uma vida melhor. As andanças de Iracema terminam na beira da estrada. Ou à margem de uma sociedade que empurra os pobres para um beco sem saída.
Suely deixa o filho com a tia e a avó e parte em busca de um sonho, que pode ser um emprego ou uma nova paixão: um céu diminuto que cabe numa janela. Aïnouz deixa essa janela aberta como uma possibilidade de esperança.

III
No começo da década de 1970, a esperança era uma quimera. Nesse sentido, a degradação física de Iracema mostra o impasse de um tempo nublado, para não dizer totalmente fechado. Mais de três décadas depois, em plena democracia, talvez haja alguma razão para sonhar. Não conhecemos o destino de Suely. E essa dúvida ou interrogação dá ao espectador a possibilidade de imaginar vários desfechos, inclusive o que há de imponderável na vida de uma sonhadora. Na nossa própria vida.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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