terça-feira, 13 de novembro de 2018

Stubb mata uma baleia

Arte de Erick Rewitzer

Se para Stubb a aparição da Lula foi coisa agourenta, para Queequeg tudo se deu de outro modo.
Quando vuncê vê’ lula”, disse o selvagem, afiando seu arpão na popa do bote suspenso, “depois tu logo vê’ Cachalote.”
O dia seguinte foi extremamente parado e abafado, e, com nada de especial para ocupá-la, a tripulação do Pequod quase não conseguiu resistir ao encanto do sono gerado por um mar tão apático. Pois aquela parte do oceano Índico por onde àquelas alturas viajávamos não é o que os baleeiros chamam de zona agitada; ou seja, ela oferece pouquíssimas aparições de marsopas, peixes-voadores, e outros nativos vivos de águas mais agitadas, como as imediações do Rio da Prata, ou ao largo das costas do Peru.
Era minha vez de ficar no topo do mastro de proa; e, com os ombros apoiados contra as cordas frouxas dos ovéns, para frente e para trás eu balançava indolente no que parecia ser uma atmosfera encantada. Nenhuma vontade conseguiria resistir; naquele divagar perdendo toda a consciência, por fim minha alma se desprendeu do corpo; ainda que meu corpo continuasse a oscilar como um pêndulo, muito tempo depois de a força que lhe tinha dado impulso ter se retirado.
Antes que o abandono total me dominasse, notei que os marinheiros no topo dos mastros principal e de mezena estavam igualmente sonolentos. De modo que, por fim, nós três nos balançávamos desfalecidos no arvoredo, e para cada balanço que fazíamos havia embaixo um meneio do timoneiro que dormitava. As ondas também meneavam suas cristas indolentes; e, ao longo do imenso transe do oceano, o leste meneava para o oeste, e o sol pairava sobre todos.
De repente, pareceu-me que bolhas estouravam para além dos meus olhos fechados; como prensas, minhas mãos se agarraram aos ovéns; uma misteriosa força invisível me salvou; com um choque voltei à vida. E, oh!, bem perto, a sotavento, a menos de quarenta braças, um Cachalote gigantesco rolava pela água como o casco virado de uma fragata, seu dorso enorme e lustroso, de uma cor Etíope, brilhando ao sol como um espelho. Mas ondulando preguiçosa pelas cavas do mar, e, vez ou outra, lançando tranqüila seu jato vaporoso, a baleia parecia um burguês corpulento fumando o seu cachimbo numa tarde de calor. Mas aquele cachimbo, pobre baleia, foi o teu último! Como se tocado por uma varinha de condão, o navio sonolento e todos os que cochilavam começaram de uma vez a despertar; e dezenas de vozes de todas as partes do navio, junto com as três que vinham do alto, lançaram o grito costumeiro, enquanto o peixe enorme, com calma e com regularidade, esguichava no ar a salmoura cintilante.
Arriar os botes! Orçar!”, gritou Ahab. E, obedecendo à sua própria ordem, baixou o leme antes que o timoneiro pudesse pegá-lo.
Os gritos repentinos da tripulação devem ter assustado a baleia; e antes que os botes descessem à água, virando-se com majestade, ela nadou a sotavento, mas com tal tranquilidade, e fazendo tão pouco movimento enquanto nadava, que Ahab, pensando que talvez ainda não estivesse assustada, deu ordens para que nem um remo fosse usado e que nenhuma palavra fosse proferida, senão em sussurros. Assim sentados, tal como Índios de Ontário nas amuradas dos botes, com as pás largas vogávamos rápida e silenciosamente; uma vez que a calmaria não nos permitia usar as velas. Logo, enquanto desse modo deslizávamos em seu encalço, o monstro levantou a cauda perpendicularmente a quarenta pés no ar e afundou, desaparecendo como uma torre que fosse tragada.
Ali vai a cauda!”, foi o grito, anúncio imediatamente seguido da presteza de Stubb em pegar um fósforo e acender seu cachimbo, pois agora haveria descanso garantido. Decorrido o intervalo da sondagem, a baleia emergiu de novo e, estando de frente para o bote do fumante, mais perto dele do que dos outros botes, Stubb se fez de rogado das honras de capturá-la. Era óbvio, àquela altura, que a baleia havia se apercebido de seus perseguidores. Todo o silêncio da cautela de nada mais adiantava. As pás largas foram deixadas, e os remos entraram ruidosamente em ação. Ainda dando baforadas no seu cachimbo, Stubb incitou a tripulação ao ataque.
Sim, uma mudança brusca acometera o peixe. Sensível ao perigo, vinha de “cabeça para fora”; projetando obliquamente essa sua parte para fora da espuma que produzia.
Força, força, meus homens! Não se apressem; demorem bastante – mas façam força; a força de um estrondo de trovão, e só!”, gritou Stubb, soltando a fumaça enquanto falava. “Força, agora; quero um movimento forte e demorado, Tashtego. Força, Tash, meu jovem – força, todos; mas mantenham a calma, mantenham a calma – frieza é a palavra –, devagar, devagar – façam força como os demônios sorridentes e a morte sombria, e levantem perpendicularmente os defuntos enterrados em seus túmulos, rapazes – só isso. Força!”
Uuh-uuh! Uah-ih!”, berrou o nativo de Gay Head em resposta, lançando algum antigo grito de guerra aos céus, enquanto todos os remadores no bote tensionado foram involuntariamente jogados para a frente com o fortíssimo golpe que o Índio impetuoso desferiu.
Mas seus gritos selvagens foram respondidos por outros quase tão selvagens. “Qui-ih! Qui-ih!”, bradou Daggoo, fazendo força para a frente e para trás em seu assento, como um tigre que anda na jaula.
Qua-la! Quu-lu!”, uivou Queequeg, como se estalasse os lábios abocanhando um bom pedaço de bife. E assim, com remos e gritos as quilhas singravam o mar. Enquanto isso, Stubb, mantendo-se à frente, encorajava seus homens ao ataque, sem parar de baforar a fumaça. Como criminosos destemidos eles desciam os remos e os puxavam de volta com força, até que o grito tão esperado surgiu: “Levante-se, Tashtego! – Ao ataque!”. O arpão foi arremessado. “À ré!” Os remadores recuaram; no mesmo instante alguma coisa passou quente e sibilante por seus pulsos. Era a ostaxa mágica. Pouco antes, Stubb havia rapidamente lhe dado duas voltas adicionais em torno do posto da arpoeira, de onde, em razão da rapidez com que corria, a fumaça azul do cânhamo subia e se misturava às baforadas sempre presentes de seu cachimbo. À medida que a ostaxa girava em torno do posto da arpoeira; assim também, antes de chegar àquele ponto, ela passava cortante pelas mãos de Stubb, das quais os panos para a mão, ou pedaços de lona acolchoada, às vezes úteis nessas ocasiões, haviam caído. Era como segurar pela folha a afiada espada de dois gumes de um inimigo, enquanto este a retorce todo o tempo para arrancá-la de suas mãos.
Molhe a ostaxa! Molhe a ostaxa!”, gritou Stubb para o remador da selha (ele sentado perto da selha), o qual, tirando o chapéu, jogou água nela. Mais voltas correram, de modo que a ostaxa começou a parar. O bote voava naquele momento pela água agitada como um tubarão cheio de nadadeiras. Stubb e Tashtego trocaram de lugares – popa por proa –, uma tarefa realmente desconcertante em meio àquela comoção balançante.
Da ostaxa vibrante, esticada por toda a extensão da parte superior do bote, e do fato de estar mais tensa que a corda de uma harpa, a impressão era de que a embarcação tinha duas quilhas – uma cortando a água, a outra o ar –, pois o bote corria agitado através dos dois elementos opostos de uma só vez. Uma cascata contínua se formava na proa; e um torvelinho ininterrupto na esteira; e, ao menor movimento dentro do bote, mesmo o de um dedinho, a embarcação, que vibrava e rangia, oscilava sua amurada convulsiva nas águas. Assim passavam, desbragados; todos os homens agarrados com toda a força aos bancos, para evitar serem lançados à espuma; e a silhueta alta de Tashtego junto ao remo-guia como que se desdobrando em duas para manter seu centro de equilíbrio. Atlânticos e Pacíficos inteiros pareciam ficar para trás enquanto eles disparavam em seu caminho, até que, por fim, a baleia afrouxou um pouco sua fuga.
Recolher – Recolher!”, gritou Stubb ao remador da proa e, voltando-se para a baleia, todas as mãos começaram a puxar o bote para perto dela, enquanto o bote ainda corria a reboque. Logo chegando perto de seu flanco, Stubb, firmando o seu joelho na tosca castanha, dardejou dardo após dardo no peixe fugitivo; a seu comando, o bote ora retrocedia frente às horríveis contorções da baleia, ora se aproximava para um novo ataque.
A corrente vermelha jorrava de todos os lados do monstro, como riachos colina abaixo. Seu corpo torturado rolava não mais na água salgada, mas no sangue, que borbulhava e fervia por centenas de metros em sua esteira. O sol crepuscular, lançando luz sobre aquele lago carmim, devolvia seu reflexo aos rostos de todos, que cintilavam entre si como se fossem peles-vermelhas. Por todo esse tempo, jatos e mais jatos de fumaça branca eram esguichados em agonia do espiráculo da baleia, e baforadas e mais baforadas veementemente expelidas da boca do oficial agitado; enquanto a cada arremesso, recolhendo a lança retorcida (por meio da vioneira a ela presa), Stubb a endireitava, batendo-a contra a amurada, para depois arremessá-la de novo contra a baleia.
Puxar – puxar!”, gritava para o remador da proa, enquanto a baleia abatida arrefecia sua fúria. “Puxar! – mais perto!”, e o bote costeou o flanco do peixe. Quando estava bem em cima da proa, Stubb cravou lentamente sua lança comprida e afiada no peixe, e ali a manteve, revolvendo sempre de novo, cuidadoso, como se estivesse cautelosamente procurando por um relógio de ouro que a baleia tivesse engolido, e que ele temia que se quebrasse antes de conseguir fisgá-lo para fora. Mas aquele relógio de ouro que procurava era a vida mais profunda do peixe. E ele então a atingiu; pois saindo de seu transe para aquela coisa indescritível que se chama “convulsão”, o monstro contorceu-se terrivelmente em seu próprio sangue, envolveu-se num impenetrável, ardente e louco vapor, de tal modo que a embarcação a perigo, retrocedendo de imediato, teve muita dificuldade de sair às cegas daquele crepúsculo frenético para o ar límpido do dia.
Já enfraquecida em sua convulsão, a baleia fez-se mais uma vez presente aos olhos; debatendo-se de um lado para o outro; dilatando e contraindo o espiráculo com espasmos e uma agonizante, seca e crepitante respiração. Por fim, sopros após sopros de sangue coagulado, como a borra púrpura do vinho tinto, foram lançados ao ar repleto de terror; e caindo, escorreram dos flancos imóveis para o mar. Seu coração havia estourado!
Está morta, senhor Stubb”, disse Tashtego.
Sim; os dois cachimbos se apagaram!”, e tirando-os da boca Stubb espalhou as cinzas mortas sobre a água; e, por um instante, ficou a olhar pensativo para o imenso cadáver que havia feito.
Herman Melville, in Moby Dick

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