sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O vagabundo de Valparaíso

Valparaíso está muito próximo de Santiago. São separadas somente pelas montanhas hirsutas em cujos cimos se erguem, como obeliscos, grandes cactos hostis e floridos. No entanto, algo infinitamente indefinível distancia Valparaíso de Santiago. Santiago é uma cidade prisioneira, cercada por muros de neve. Valparaíso, por sua vez, abre as portas ao mar infinito, aos gritos das ruas e aos olhos das crianças.
No momento mais desordenado de nossa juventude nos metíamos apressadamente, sempre de madrugada, sempre sem ter dormido, sempre sem um centavo nos bolsos, em um vagão de terceira classe. Éramos poetas ou pintores de pouco mais ou pouco menos de vinte anos, providos de uma carga valiosa de loucura inconsequente que queria transbordar, estender-se, estalar. A estrela de Valparaíso nos chamava com sua força magnética.
Somente anos depois voltei a sentir o mesmo chamado inexplicável, de outra cidade, durante meus anos em Madri. Inesperadamente, em uma cervejaria, saindo de um teatro de madrugada ou simplesmente andando pelas ruas, ouvia a voz de Toledo que me chamava, a muda voz de seus fantasmas, de seu silêncio. E a essas altas horas, junto com os amigos tão loucos quanto os de minha juventude, nos largávamos para a antiga cidadela calcinada e retorcida para dormir vestidos sobre as areias do Tajo, debaixo das pontes de pedra.
Não sei por que, entre minhas decantadas viagens a Valparaíso, uma ficou gravada, impregnada por um aroma de ervas arrancadas à intimidade dos campos. Íamos nos despedir de um poeta e de um pintor que viajariam para a França em terceira classe. Como nenhum de nós tinha com que pagar nem o mais ínfimo dos hotéis, procuramos Novoa, um de nossos loucos favoritos do grande Valparaíso. Não era tão simples chegar à sua casa. Subindo e resvalando por colinas até o infinito, víamos na escuridão a silhueta imperturbável de Novoa que nos guiava.
Era um homem imponente, de barba cerrada e grossos bigodões. As abas de sua roupa escura batiam como asas nas alturas misteriosas daquela cordilheira que subíamos cegos e trôpegos. Ele não parava de falar. Era um santo louco, canonizado exclusivamente por nós, os poetas. E era, naturalmente, um naturalista, um vegetariano vegetal. Exaltava as relações secretas que só ele conhecia entre a saúde natural e as dádivas da terra. Catequizava-nos enquanto caminhava. Dirigia para trás a voz atroadora como se fôssemos seus discípulos, com o vulto descomunal avançando como o de um São Cristóvão nascido nos subúrbios noturnos e solitários.
Finalmente chegamos à sua casa, uma cabana de duas peças. A cama do nosso São Cristóvão ocupava uma delas. A outra era tomada em grande parte por uma imensa poltrona de vime profusamente entrecruzada por supérfluos florões de palha e estantezinhas estranhas, incrustadas nos braços uma obra-prima do estilo vitoriano. A poltrona grande me foi destinada para dormir naquela noite. Meus amigos estenderam no chão os jornais da tarde e se deitaram precariamente sobre as notícias e os editoriais.
Logo soube, por respirações e roncos, que todos já dormiam. Sentado naquele móvel monumental, era difícil conciliar o sono com meu cansaço. Ouvia-se um silêncio de altura, de cumes solitários. Só alguns latidos de cães austrais que cruzavam a noite, só um apito longíssimo de navio que chegava ou saía me davam conta da noite de Valparaíso.
De repente senti um poder estranho e arrebatador me invadindo: uma fragrância montanhosa, um cheiro de pradaria, de vegetações que tinham crescido com a infância e que eu tinha esquecido no fragor da vida da cidade. Senti-me reconciliado com o sonho, envolto pelo acalanto da terra maternal. De onde poderia vir aquela palpitação silvestre da terra, aquela pureza de aromas? Metendo os dedos por entre os vãos ásperos do vime da poltrona colossal descobri inumeráveis compartimentos e, neles, apalpei plantas secas e lisas, ramos ásperos e redondos, folhas lanceoladas, tenras ou enrijecidas. Todo o arsenal medicinal de nosso pregador vegetariano, o modelo inteiro de uma vida consagrada a recolher arbustos com as grandes mãos de São Cristóvão exuberante e andarilho. Revelado o mistério, dormi placidamente, velado pelo aroma daquelas ervas guardiãs.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário