terça-feira, 28 de agosto de 2018

Uma noite perdida para Mandovi

Em cada viagem de volta Geminiano trazia uma ou duas pessoas na carroça, os passageiros saltavam no largo ou numa rua e ficavam parados numa esquina ou na sombra do coreto, muito interessados nas pessoas que passassem, mas apenas para olhar; não falavam com ninguém, não cumprimentavam nem gostavam de responder cumprimento, se respondiam era de má vontade, para dentro. Até padre Prudente, que uma vez passou por dois desses homens e ingenuamente olhou-os esperando uma demonstração qualquer de respeito, recebeu de volta um olhar fixo, que não soube precisar se era de atrevimento ou de espanto.
As crianças sofriam muitas provocações desses homens. Um certo Mandovi, menino que vendia cigarros numa caixinha de sapatos, era uma vítima constante. Da primeira vez, tomando alguns daqueles homens por possíveis compradores, ele chegou-se e ofereceu a mercadoria. Um dos homens despachou-o com a mão, mas outro achou de investigar o que havia na caixa; só que em vez de perguntar, ou pedir para ver, como fazia toda pessoa nova na cidade, o homem foi destampando a caixa e soltando a tampa no chão na maior sem-cerimônia. Mandovi já não gostou, e para mostrar que não tinha gostado puxou a caixa do alcance do homem e abaixou-se para recuperar a tampa, ao mesmo tempo pensando se continuaria dando atenção àquela gente ou se a cortaria de vez. Quando se ergueu, passando a tampa na roupa para limpar a terra, sentiu-se agarrado pela gola, enquanto outra mão tomava a caixa.
Que poderia ele fazer, tão pequeno e magrinho, contra dois homens enormes, de barba na cara, se bem que um deles parecesse não participar da curiosidade do outro?
O homem segurou a caixa com a mão esquerda, ajudando com o corpo, com a direita retirou uma rodilha de cigarros, exatamente a maior.
Isso o que é? — perguntou, rodando a rodilha na mão como se não soubesse, e sem olhar para o menino.
Mandovi teve vontade de responder que era pé de moleque, ou chouriço-pra-fazer-feitiço, mas procurou paciência e explicou direito. Mas o homem não estava interessado na resposta, e tentava arrancar com os dentes a linha que amarrava a rodilha.
Não tira que vai espandongar tudo — avisou Mandovi já tarde. O homem já tinha arrebentado a linha de um lado, os cigarros aproveitaram para se livrar do arrocho, se abriram em flor, caíram por todos os lados em volta da mão do homem e se espalharam no chão.
Agora paga. Desmanchou, paga — disse Mandovi, acreditando estar aplicando uma lei lógica que qualquer pessoa entenderia. Mas o homem soltou uma gargalhada de jogar o corpo para trás, e nisso largou a caixa, que caiu de lado e derramou as outras rodilhas no chão.
Mandovi esperou o homem acabar de achar graça; mas vendo que isso ia demorar um pouco, aproveitou o tempo para apanhar as rodilhas inteiras, deixando os cigarros soltos, que no seu entender não lhe pertenciam mais. Ainda rindo, o homem saiu andando com passos de bêbedo, pisando em cigarros, machucando rodilhas, e propositalmente ou não deu uma bicanca na caixa. Mandovi parou com as duas mãozinhas no chão, olhou e viu dois homens de muitas pernas, andaimes, vigas móveis tremendo, indo embora.
Sem pensar no que fazia, ele apanhou umas coisas no chão, pedras, paus, sabugos e foi jogando a esmo, com raiva, os baques fofos, os gritos, os homens correndo, as pedras não alcançando mais.
Quando chegou em casa, Mandovi pensou que alguém tivesse adoecido de repente, ou que o pai tivesse se machucado na oficina: muita gente na varanda conversando, perguntando, dando opinião. Mandovi já entrou assustado, a mãe correu para ele, abraçou-o:
Com efeito, meu filho! Como você foi fazer uma coisa dessas?
O pai separou-se de um grupo que conversava diante da janela e falou enérgico:
Mandovi, venha na oficina comigo.
Mandovi deixou a caixa de cigarros em cima da mesa, olhou para a mãe, não tomou conhecimento das outras pessoas. O pai chamou de novo, ele acompanhou-o pela escadinha do quintal.
Ninguém quis sair imediatamente; se seu Apolinário ia castigar o filho, eles queriam pelo menos ouvir os gritos. A mãe foi para a janela da frente para não ouvir, desejando que o marido não exagerasse no castigo, afinal de contas qual o menino que não faz uma travessura de vez em quando? Uma vizinha acompanhou-a para consolar, ela não escutava as palavras de consolo, estava de atenção voltada para a oficina ali ao lado da casa, não demoraria muito e Mandovi estaria gritando debaixo das chicotadas. Apolinário quando batia não alisava nem escolhia lugar, e ainda tinha a mania de bater com aquela tira de couro tão grossa e tão dura.
A vizinha falava, a mãe ia ficando impaciente, os gritos não vinham, alguma coisa fora do comum devia estar acontecendo.
Foi um susto para a mãe quando Mandovi apareceu ao lado dela já explicando por que tinha voltado com quase todo o cigarro.
Você disse a seu pai? — ela perguntou depois de ouvir as razões.
Disse sim senhora.
E ele não fez nada?
Não senhora. Disse que eu fiz o que devia.
A alegria da mãe nasceu e morreu ali mesmo na janela. Morreu quando ela compreendeu o motivo de tanta visita fora de hora: aquela gente esperava uma reação dos homens, e estava ali para assistir. Os homens não iam levar pedradas na rua e voltar mansinhos para casa. Apolinário dando razão a Mandovi agravou a situação, porque sabendo que o menino não tinha sido castigado, os homens iam querer eles mesmos aplicar o castigo, e sabe-se lá de que maneira.
Pelo resto do dia a casa esteve cheia de gente, uns se cansavam e iam embora, outros iam chegando de fresco, todo mundo se apertando na varanda pequena como para beijar o divino em pouso de folia, aquela zoada, gente se espremendo contra os móveis, ameaçando derrubar o pote de água que descansava num cepo alto num canto, a toda hora era preciso alguém protegê-lo do balanço, mas um pouco de água sempre derramava, fazendo lama no chão; gente pisando os pés uns de outros, pedindo desculpa e pisando de novo. Uma hora lá seu Apolinário perdeu a paciência e resolveu acabar com a furupa, bateu palma para chamar atenção e mandou que esquipasse todo mundo, disse que ali não tinha morrido ninguém por enquanto, graças a Deus, que fossem sacudir o corpo em algum serviçal como ele estava fazendo desde muito cedo — e foi pegando os chapéus que estavam nos cabides, em cima da mesa, no parapeito das janelas, na mão dos donos e pondo na cabeça das pessoas, às vezes o chapéu de um na cabeça de outro, e empurrando gente pelo corredor afora, cercando com os braços os que ameaçavam voltar.
A mulher achou boa essa providência, mas ficou envergonhada porque no meio do pessoal estavam umas amigas dela que não acharam jeito de ficar depois do que Apolinário tinha acabado de dizer.
Conheceram, papudos! Agora você pode fazer a janta em paz — disse Apolinário à mulher. — Se precisar de mim, estou na oficina. E outra coisa, Serena. Convém não deixar o Mandovi sair mais hoje.
Dona Serena gostava daquele jeito despachado e confiante do marido, mas achava que ele estava sendo despreocupado demais em hora de tanta ameaça. Pensando e pensando nisso, ela se distraiu na cozinha e cometeu uma série de deslizes — queimou a mão numa panela, deixou o arroz esturrar, esqueceu a chaleira fervendo até a água transbordar e quase apagar o fogo. Ela não esquecia os homens da tapera e os males que eles pudessem fazer.
Quando Apolinário veio jantar, ela disse com muito jeito que seria melhor ele não sair de casa à noite.
Por que agora? Eu não estou de resguardo.
Eu morro de medo por causa disso que Mandovi fez.
Tem nada não. O que ele fez foi bem feito.
Meu medo é que os homens queiram tirar vingança.
Tiram não. Se vierem arrastando mala, saem com ela espandongada.
Em vez de se acalmar com a bravata do marido, dona Serena mais se alarmou:
Olhe lá, Apolinário. Tenho muito medo.
Não tem motivo. Quem tem razão tem salvação.
Tomara que seja.
Mas Apolinário acabou fazendo o sacrifício de não dar a sua voltinha de toda noite. Ao escurecer foi à oficina, apanhou um malho dos mais leves e trouxe para casa, e enquanto Mandovi puxava água do poço para encher as vasilhas, e dona Serena grosava palha para cigarros, ele ficou um pouco na janela fumando e respondendo os cumprimentos dos passantes; depois foi para a varanda e deitou-se enganchado na rede, com o malho ao alcance da mão. Naquela noite Mandovi ficou proibido de brincar no largo.
Mas, mãe… que mal faz?
Convém não. Falha hoje. Brinquedo não é serviço urgente.
Se eles vierem, eu corro. Ninguém me pega na corrida.
Por mim não vai. Só se seu pai deixar.
Chamado a opinar, Apolinário apoiou a mulher:
Vai não. Sua mãe já disse, está resolvido. Pegue seu livro, vá estudar.
Não tinha jeito. Aquela noite estava mesmo perdida para Mandovi.
José J. Veiga, in A noite dos ruminantes

Nenhum comentário:

Postar um comentário