Sentadinhos
na escada, mão no queixo: a carinha enrugada no corpo do menino de
oito anos. Em cada olhinho suspensa uma lágrima vermelha.
O
doutor abre a porta. Mais que o João se esforce, não acodem as
pernas.
— Fique
sentado, rapaz. O que foi?
— O
juiz me chamou. Quer pensão, a desgracida.
— A
Maria?
— Amanhã
no fórum. Dez horas. Levo o doutor comigo.
— O
oficial de justiça que intimou?
— Dou
uma nota para o doutor.
— Não
posso, João. Amanhã eu viajo. Ouça meu conselho.
— Então
não vou.
— Se
foi chamado, vá. Mas não assine nada. Entendeu bem?
— Estou
carpindo a rocinha.
— Que
rocinha é essa?
Chega-se
o parceiro das noitadas no Balaio de Pulga.
— Sou
o Carlito, doutor. É uma rocinha de milho. Às meias com o Perereca.
— Ih,
meu Deus. Logo o Perereca. Não é ele que bebe?
— Mais
que o pai, doutor.
— Só
milho torto há de vingar.
João
cabeceia, um fio de baba fosfórea no queixo imberbe.
— Oi,
João. Está me ouvindo?
Exibe
a linguinha
azul do vinagrão — uma ostra que não pode engolir nem cuspir.
— O
doutor vai. Não é, doutor?
— Já
disse que não. Você deve ir. Só não assine.
Derruba
no joelho o chapelão de palha, um risco branco na testinha lavada de
suor frio.
— Já
sei. Não assino.
Grugruleja
um palavrão e oscila perigosamente no degrau.
— Carlito,
não é? Me diga. Ele quis mesmo se enforcar?
Subiu
na cadeira, enfiou a corda no pescoço, o nó correu. E caiu de pé
bem vivinho.
— E
a Maria? Está com o André?
— Do
André não sei. Com o Joaquim é todo dia. Não tem segredo.
— Como
é que pode? Feia, peluda, óculo escuro?
— Tem
mais, doutor. Quando estavam juntos, o João voltou de repente. As
duas da tarde. Deu com ela e o Juca. Na cama.
— Não
adiantou prendê-la na garupa da bicicleta.
— Pelas
costas só xinga de Colibri o hominho.
— E
os barracos quantos são?
— Eram
três. Agora dois. Vendeu um, que foi desmanchado. E bebeu todinho no
Balaio de Pulga.
O
triste colibri ressona, bolhas de espuma no canino de ouro.
— Ei,
João? E a tua filha, João? Com quem ficou?
— Diabo
de nego. Toquei o porco do nego.
— Você
não respondeu. Está com você? Ou com a Maria?
— Comigo.
Tanto quer saber. Ajeitei o paiol para o nego.
— Que
negro é esse?
— …
— O
negro fez arte com a menina, doutor.
— Peste
de nego. O nego sujo.
— Deu
queixa para o sargento?
Sacode
a cabecinha grisalha, bate a pestana que já se fecha.
— O
doutor não sabia do baile nu?
— Epa,
que história é essa?
— O
negro já de olho na menina. Que é bonitinha. Embebedou o João. O
negro na cachaça. O João no vinho tinto. E deu a ideia
do baile.
— Barbaridade.
— Trouxe
a filha do Gervásio para o Colibri. E quis para ele a menina.
— Ah,
negro safado.
— O
doutor sabe aquela radiolinha do João? Ligou a todo o volume. Nosso
Colibri, o mais pequeno e barulhento. No melhor da festa os vizinhos
reclamaram do barulho. E a polícia acabou com o baile.
— Não
me diga.
— Quando
chegou o sargento viu todos pelados. O negro com a menina do João. E
ele com a filha do Gervásio. De doze anos. Que tinha fugido do
asilo.
Daí
o Carlito ri gostoso. O doutor dá um passo para trás.
— Ele
se gabou. Fui
preso, sim.
E batia no peitinho sem nenhum cabelo. Antes
derrubei dois praças.
— Pouca
vergonha, João.
— Dele
não é a culpa, doutor. Foi o negro. O sargento abriu a porta, a
música bem alto — e todo mundo nu.
— Com
a menina de doze anos!
— Tivesse
mais, doutor, já seria maior que ele.
— …
— Não
fez mal para ela. O negro, esse, fugiu pela janela. Mas o João foi
fácil. Carregado — nu e esperneando de botinha vermelha — no
colo de um praça. Sem tempo de alcançar a pistolinha.
— O
último dos heróis.
— Levaram
para a cadeia. As meninas na sala do sargento. Não é que o velho
Gervásio quis dar parte do João? A guria, sorte dele, estava
inteira.
—…
— O
negro, sim, perdeu a filha do João. Um negro daquele tamanho, já
viu? E o juiz casou com separação.
— De
corpos. E o bandido guardou a menina?
— O
João arrumou para os dois o ranchinho dos fundos.
Furioso o colibri ostenta na cinta o punhal e a pistolinha.
Furioso o colibri ostenta na cinta o punhal e a pistolinha.
— Esse
nego porco. O diabo do nego sujo.
— Entendeu
bem, João? Você precisa ir. Nada não assine.
Repuxa
no pescocinho o enorme lenço encarnado.
— O
doutorzinho é meu pai.
— Só
faça trato de boca.
— Os
três barracos são meus. O hominho que ganhou. Foi o hominho que
trabalhou.
— Metade
é do hominho. E metade da Maria.
— Não
se fie, doutor. Essa é uma traidora: De que lado o doutor está?
— Vá
para casa, João. Dormir na cama.
O
gigante dos colibris ergue-se no salto da botinha.
— Acuda
o hominho.
Pende
para cá e para lá, upa, abraçado na palmeira.
— Não
vai longe esse hominho.
Dalton
Trevisan, in
Virgem louca, loucos beijos
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