A família, a
escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um
território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar,
outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros.
Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio.
Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um
talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural.
Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é
música em estado de gravidez.
Quando me viam,
parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado.
Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados
fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.
— Venha, meu
filho, venha ajudar-me a ficar calado.
Ao fim do dia, o
velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as
noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do
escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para
lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele
inspirava fundo e dizia:
— Este é o
silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar devidamente
calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança
de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona
Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de
existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes
viventes.
— Você sabe,
filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é
diferente.
Meu pai. A voz dele
era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio.
Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem
palavras nem gramática.
Ao longe, se
entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por
certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu
era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno
progenitor.
— Não chamamos o
Ntunzi?
— Deixe o seu
irmão. É consigo que mais gosto de ficar sozinho.
— Mas estou quase
a ter sono, pai.
— Fique só mais
um pouco. É que são raivas, tantas raivas acumuladas. Eu preciso
afogar essas raivas e não tenho peito para tanto.
— Que raivas são
essas, meu pai?
— Durante muitos
anos alimentei feras pensando que eram animais de estimação.
Queixava-me eu do
sono, mas era ele quem adormecia. Deixava-o cabeceando na cadeira e
regressava para o quarto onde Ntunzi, desperto, me esperava. O meu
irmão me olhava com mistura de inveja e comiseração:
— Outra vez essa
treta do silêncio?
— Não diga isso,
Ntunzi. — Esse velho enlouqueceu. E o pior é que o gajo não gosta
de mim.
— Gosta.
— Por que nunca
me chama a mim?
— Ele diz que sou
um afinador de silêncios.
— E você
acredita? Não vê que é uma grande mentira?
— Não sei, mano,
que hei-de fazer se ele gosta que eu fique ali, todo caladito?
— Você não
percebe que isso é tudo conversa? A verdade é que você lhe traz
lembranças da nossa falecida mãe.
Mil vezes Ntunzi me
fez recordar o motivo por que meu pai me elegera como predileto. A
razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da
nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para
um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de
meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três
anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as
minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse
convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre
fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha
morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:
— Alminha!
E nunca mais ele
proferiu o nome dela. Nem evocou lembrança do tempo em que tinha
sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado em esquecimento.
— E você me
ajude, meu filho.
Para Silvestre
Vitalício, a minha vocação estava definida: tomar conta dessa
insanável ausência, pastorear demônios que lhe abocanhavam o sono.
Certa vez, enquanto partilhávamos sossegos, arrisquei:
— Ntunzi diz que
lhe faço lembrar a mãe. É verdade, pai?
— É o contrário,
você me afasta das lembranças. Esse Ntunzi é que me traz espinhos
do antigamente.
— Sabe, pai?
Ontem sonhei com a mãe.
— Como pode
sonhar com alguém que nunca conheceu?
— Eu conheci, só
não me lembro.
— É a mesma
coisa.
— Mas recordo a
voz dela.
— Qual voz dela?
Dordalma quase nunca falava.
— Recordo um
sossego que parece, sei lá, parece água. Às vezes penso que me
lembro da casa, o grande sossego da casa…
— E Ntunzi?
— Ntunzi o quê,
pai?
— Ele insiste que
se recorda da mãe?
— Não há dia em
que ele não se recorde dela.
Meu pai nada
respondeu. Ruminou um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de
quem foi ao fundo da alma, afirmou:
— Vou dizer uma
coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem lembrar nem sonhar
nada, meus filhos.
— Mas eu sonho,
pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.
— É tudo
mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas cabeças.
Entendem?
— Entendo, pai.
— E o que vocês
lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças.
O sonho é uma
conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas. Mas já não
havia nem falecidos nem território das almas. O mundo tinha
terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos.
O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado.
Foi assim que, de uma assentada, meu pai falou. Até hoje essa
explanação de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e confusa.
Porém, naquele momento, ele foi peremptório:
— É por isso que
vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não
sonho, nem lembro.
— Mas, pai, o
senhor não tem memória da nossa mãe?
— Nem dela, nem
da casa, nem de nada. Já não me lembro de nada.
E ele se ergueu,
rangente, para esquentar o café. Os passos eram de embondeiro que
vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que
se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos
vapores da cafeteira. Ainda de olhos fechados, sussurrou:
— Vou dizer um
pecado: deixei de rezar quando você nasceu.
— Não diga isso,
meu pai.
— Estou-lhe a
dizer.
Uns têm filhos
para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que
era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os
falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem
às alturas.
— Mas Deus está
surdo — disse.
Fez uma pausa para
erguer a chávena e saborear o café e, depois, rematou:
— Mesmo que não
estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?
Em Jesusalém, não
havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia
catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus.
Mia Couto,
in Antes de nascer o sol
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