sábado, 30 de junho de 2018

Que estranho viver

Li em algum lugar que o escritor português António Lobo Antunes sofre de problemas de audição. Seu avô materno, José, era surdo. Ainda moça, sua mãe, Maria Margarida, também passou a não escutar bem. Lobo Antunes convive, sem dramas, com as limitações que a genética lhe impôs. Da falta, faz combustível.
As vozes que vacilam no exterior se multiplicam em sua mente. Seus romances são um grande vozerio. Essas falas nos açoitam, de novo, em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (Alfaguara). Vozes que lutam entre si, que se combatem, como se disputassem, a cada linha, seu lugar na página. António Lobo Antunes, o homem, é só o campo de batalha.
A experiência na guerra foi decisiva em sua formação. Em 1971, embarcou para Angola, onde lutou a guerra colonial. De volta a Lisboa, dois anos depois, era outro homem. “A guerra me obrigou a relativizar tudo”, explicou. “Era tão simples morrer, e morríamos em plena saúde.” Três anos se passaram e começou a escrever Memória de elefante, seu primeiro romance.
Finda a guerra, o combate se transferiu para o cenário interior. Os romances de Lobo Antunes capturam vozes que se desafiam. Aproveito uma ideia de José Saramago – seu mais notório desafeto: “Escreve-se com tudo o que se tem dentro, só com o que se tem dentro”. Lobo Antunes escreve com sua surdez (que se torna vozerio) e com suas feridas de guerra (que se tornam combustíveis).
Mais uma ideia de Saramago: “Cada um de nós só pode escrever seus próprios livros. Qualquer livro que eu escreva não tira o lugar de nenhum outro livro, se limita a ocupar o seu próprio lugar”. É a verdade. Eça não é superior a Machado, ou Pessoa superior a Drummond simplesmente porque Eça não é Machado e Pessoa não é Drummond.
Agora lembro onde li a história da surdez de Lobo Antunes: em uma longa entrevista a María Luisa Blanco (Conversas com Lobo Antunes, editora Dom Quixote, Lisboa, 2001). Ali, ele próprio dá razão a Saramago. Diz: “Não se inventa nada, a imaginação é a maneira como se arruma a memória. Tudo tem a ver com a memória”. A memória condena Lobo Antunes a ser Lobo Antunes e condena José Saramago a ser José Saramago. Ninguém pode ser mais do que é.
As vozes dos personagens de Que cavalos são aqueles..., emitidas por membros de uma mesma família, comprovam isso. O romance (parece, mas nada é seguro em seus livros) começa na voz de Beatriz, a filha que sobreviveu a dois casamentos infelizes. “Que estranho viver, como se faz, começa-se por onde, em que capítulo”, ela desabafa, enquanto reconstitui a história da mãe morta.
Beatriz idealiza os livros, que seriam nítidos e coerentes. Adoecido da mesma ilusão, o leitor de Lobo Antunes sente o golpe. Que estranho o livro que leio! O que fazer dessas vozes que se misturam? Como separá-las? Como ordená-las? E, no entanto, é assim, nessa ventania de palavras – e não na planície límpida e seca da retórica – que vivemos.
Quem fala? Rita, a filha que um câncer matou na juventude, ou Ana, a que se entregou às drogas? João, o filho que esconde sua homossexualidade, ou o velho pai? Vozes e mais vozes que se enroscam e, em vez de esclarecer, nos ensurdecem. Que estranho ouvi-las.
Lobo Antunes lembra, a respeito, uma sábia reflexão de Kipling: “Demasiadas palavras, há sempre demasiadas palavras!”. A constatação não o liberta do excesso. Escrito entre 2008 e 2009, seu novo romance tem 334 páginas. Que terminam por ser 668, ou quem sabe 1.336 – de tal forma ele nos obriga a ir e voltar, ir e voltar. Lemos, relemos, e nunca basta.
Quando lhe perguntam de que tratam seus livros, Lobo Antunes gosta de recordar uma ideia do escritor Francisco Manuel de Melo: “O livro trata do que está escrito nele”. As palavras (e só elas) geram palavras. São palavras, ainda, que trazemos grudadas na memória – palavras que procedem, talvez, de antes de nosso nascimento. Nelas existimos, pensava Manuel de Melo. Por isso somos humanos.
Lobo Antunes sabe que a literatura não é explicativa; nem decorativa. Não “ilustra”, não “exemplifica”, tampouco “ensina”. As palavras se limitam a roçar o mundo. Em dado momento de Que cavalos são aqueles... , a narradora, Beatriz, muito irritada, reclama de seu autor: “As palavras avançam depressa e o papel não chega, eis o António Lobo Antunes a saltar frases não logrando acompanhar-me e a afogar num tanque os gatinhos do que sinto para se desembaraçar de mim”. Exprimir não é dar conta. A língua é mais estreita que a experiência.
Volta e meia, um personagem se pergunta: “És tu?”. A dúvida acompanha o leitor até a última página. Como em um interurbano dissolvido em linhas cruzadas, nos perguntamos: afinal, quem fala? A voz de António Lobo Antunes, o homem, se mescla às vozes fictícias e se torna, ela (ele) também, ficção.
Lá pelas tantas, ele escreve: “Este livro é o teu testamento, António Lobo Antunes, não embelezes, não inventes, o teu último livro, o que amarelece por aí quando não existires”. A ideia da despedida percorre todo o romance, como um sinal (escandaloso) da estranheza de viver. Tudo por um fio, sempre.
Em outro momento, é o filho João quem ouve uma pergunta de seu autor: “Escrevo assim?”. E ele, muito compenetrado, responde: “Escreva”. O autor (Lobo Antunes) não está seguro do que faz. Como um transmissor precário (um velho rádio, com chiados e interferências), ele bem que tenta. Ficamos com o que consegue fazer. Isso é um romance.
Em outro momento, é o filho Francisco, o ganancioso, quem desconfia das palavras. No escritório da família, ele inventaria os objetos. Encontra um que parece uma estatueta ou um vaso. Não sabe ao certo o que é. “Com a palavra estatueta e a palavra vaso sem sentido, descrevam-me o que chamam estatueta e o que chamam vaso para me lembrar o que é”, diz.
Ainda no fecho, o romance trepida: “Não sei se tenho casa, mas é a casa que regresso”. O romance (a estrada) acaba, mas a carruagem das palavras continua a avançar. Ao concluir seus livros, repetindo a frase célebre de Gogol diante de Almas mortas, Lobo Antunes costuma pensar: “Sempre tenho a tentação de lhe chamar poema”.
José Castello, in Sábados inquietos

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