domingo, 31 de dezembro de 2017

Rir junto é melhor que falar a mesma língua

[…] Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe mudaram o nome, no batismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha do seu nome original. Ele se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho.
Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
Ini nkabe dziua (expressão que significa “Eu não sei”, na língua chisena).
Ah, o Doutor já anda a aprender a língua deles?
Deles? Afinal, já não é a sua língua?
Não sei, eu já nem sei…
O português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o presente.
A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
Quais fungos? — reage Bartolomeu. — Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português…
O riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso. Quase colide com Suacelência que acaba de cruzar a estrada. O Administrador vem esbaforido e cumprimenta, de forma esquiva, os presentes. Detém-se sob a janela, aproveita a sombra para enxugar meticulosamente o afogueado rosto.
Então, Excelência — inquire o velho Sozinho —, tão cedo e já anda a chatear as moscas?
Que se passa, Suacelência? — pergunta o português, emendando a indelicadeza do seu paciente.
A rapaziada da banda eleitoral — suspira, contendo uma emergente onda de fúria —, a rapaziada fugiu com os instrumentos.
Mas isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda?
Ignorando o tom irônico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala política, manobra dos inimigos da Pátria.
Um feiticeiro conhece todos os feiticeiros… — ironiza o velho Sozinho.
Por que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país?
O país preferia que o senhor não tivesse feito nada.
Por que não gosta de mim?
Eu gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem?
Contudo, o Administrador já desandou, estrada fora, coxeando levemente. Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político.
Sinto pena dele — admite o português.
Pois eu estou-me merdando para o gajo — remata Bartolomeu.
Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.
Puta de vida — diz —, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido — e conclui, após recuperar fôlego: — O Doutor acha que sou uma anormalidade?
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
Depende — responde o português.
O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
Sim.
Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

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