sábado, 30 de dezembro de 2017

Elegia a um felino


Para Stefania Chiarelli

Os gatos têm a má fama de serem ariscos, esquivos, indiferentes; de não darem a mínima para o seu dono e de serem altivos até a intolerável arrogância. Por que tantos atributos negativos ao membro mais inofensivo da família dos felídeos? Talvez pela independência desses bichos. Por isso, muita gente os despreza e mesmo os detesta.
Não fazem festa nem estardalhaço, não são excessivamente carentes de afeto, podem dormir e sonhar por um século e esquecer o mundo ao redor. E seus miados são notas monótonas de uma canção minimalista. Não por acaso, um ditado chinês diz: O cachorro é um romance, e o gato, um poema.
Nesse sábio ditado oriental reside uma delicada definição dos gêneros literários. Pense no cotidiano de um cão: as peripécias, o corre-corre, os latidos, os momentos de exaltação e melancolia, os ganidos de dor, saudade ou fome, as fugas, os saltos estabanados, os ataques de raiva, as mordidas, o afeto meloso, as disputas ciumentas… Tudo isso lembra o trançado de eventos e peripécias de um romance.
Agora imagine o discreto cotidiano de um gato: a pose hierática, a atitude ensimesmada, o salto sem ruído, a expressão misteriosa do olhar, a repetição dos gestos, como se cada passo repetisse o anterior, o olhar em transe, focando as asas de um inofensivo beija-flor…
O gato encarna uma subjetividade lírica que reitera o ditado chinês. E quantos poetas não fizeram desses bichinhos um tema lírico, um canto a esse olhar misterioso que nos surpreende de algum lugar improvável? Um desses poetas, um dos maiores de língua francesa, escreveu que os chineses veem a hora do dia ou da noite nos olhos de um gato.
Algo me diz que os felinos vivem no tempo e os cachorros, no espaço. É o que senti no meu convívio com Leon, meu único animal de estimação. Encontrei-o num descampado próximo do edifício onde eu morava. Um bichaninho, como se diz no Norte e em outras regiões do Brasil. Pequeno, mirrado e faminto, sua pelagem reluzia um amarelo vivo. Eu não era um conhecedor de felinos, mas sabia que esses animais cultivavam a introspecção. Levei-o para o apartamento, onde foi um hóspede discreto que, aos poucos, tornou-se um companheiro quase silencioso. E, contrariando o senso comum, Leon não era esquivo nem altaneiro.
Era um gato de grande caráter, e nisso ele se diferenciava de muitos políticos. Aliás, os raros momentos de irritação de Leon ocorriam durante as campanhas eleitorais, quando os carros de som e trios elétricos de Manaus alardeavam promessas absurdas e mentirosas. O gato reagia no ato, emitindo miados dissonantes e enlouquecidos, pulando da mesa para a geladeira e, por fim, me encarando com um olhar de revolta e indignação. Eu fechava as portas e janelas para abafar a algaravia da propaganda política, e ficava encharcado de suor no pequeno apartamento transformado num forno. Mas isso era preferível às ondas sonoras de mentiras que tanto espezinhavam Leon.
Ou seriam ondas de mentiras sonoras?
Gato, gato: o tempo passa como se fosse uma distração. Já faz mais de dez anos. Se soubesses como os políticos continuam os mesmos. São outros, mas os mesmos. E tudo indica que o futuro nos reserva uma galeria de mascarados diferentes uns dos outros, mas bastará tirar as máscaras para que os mesmos reapareçam que nem fantasmas do passado. Bem me dizias, com teu olhar lancinante, que alguns políticos valem menos que os dejetos enterrados no descampado. Teus dejetos.
Mas não é só dessa militância felina que sinto saudades. Quando eu lia um romance ou preparava uma aula, Leon se aproximava com passos preguiçosos e deitava na escrivaninha, ao lado de um livro de Stendhal, Apollinaire ou Zola. Às vezes, movido por uma euforia de leitor voraz, ele mastigava páginas, capítulos inteiros de um romance. Foi assim que as páginas de dois preciosos livros da Bibliothèque de la Pléiade viraram bolinhas úmidas e rolaram na lajota da sala. Mas as capas ficaram intactas, inclusive a sobrecapa de plástico. Quando se tratava de poesia, Leon adquiria uma expressão mais intimista, e seu olhar acompanhava cada página lida por mim.
Como esquecer aqueles olhos de fogo que brilhavam nas incontáveis noites de apagão? Eu subia os seis lances de escada, abria a porta e, na escuridão, duas gotas iluminadas me esperavam.
Tudo isso acabou.
Antes de ir embora para São Paulo, pedi à zeladora que cuidasse de ti. Pensei: daqui a dois meses volto para Manaus e trago de volta Leon e meus livros. Ainda hesitei, temendo algum acidente, alguma bala perdida no bairro pobre onde ele ia morar. A hesitação é um erro. Como nos romances de Conrad, cometi uma grave falha moral. Pensava que um dia eu ia te buscar no Amazonas. Pensava que um bicho, bichano vira-lata pudesse esperar. Tarde demais. O gato, um gato, não é indiferente. Soube que, na minha ausência, ele comia menos, miava como um desesperado. Um dia parou de comer. A zeladora, a meu pedido, levou-o ao veterinário. Comprei a passagem aérea, mas antes telefonei para saber como ele estava.
Morreu”, disse a zeladora.
Morreu? Esse veterinário… O que ele fez? O que disse?”
Saudade.”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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